O visitante do quarto de Sutherland

Felipe Kaizer


Texto produzido para a disciplina Design e comunicação em mídias digitais do Prof. Romero Tori no curso de pós-graduação Design e Humanidade no Centro Universitário Maria Antonia USP em 2011.

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Este breve artigo tem uma pretensão clara: analisar mais atentamente a proposição de Ivan Sutherland acerca do monitor último, apresentado em seu artigo The Ultimate Display de 1965, no qual um computador seria capaz de controlar a matéria, produzindo assim experiências inéditas ao mundo real.

Tentaremos reconhecer a partir daí não só as suposições implícitas nessa proposição, mas talvez algumas das suas implicações. Cabe então termos em mente que a investigação não é de forma alguma exaustiva – dada as dimensões modestas deste texto –, e tampouco é enumerativa. Não nos interessa aqui colecionar exemplos, mas sim trilhar o percurso reverso: das palavras de Sutherland em direção aos conceitos que tornam possível sequer especular sobre um quarto onde um computador poderia controlar a existência da matéria. O que se encontra nesse caminho em direção aos supostos fundamentos?

Em primeiro lugar é preciso se demorar junto as palavras do autor:

"O monitor último seria, obviamente, um quarto onde um computador poderia controlar a existência da matéria." [1] 

De imediato a proposição reconhece uma diferença fundamental entre espaços (ou entre realidades se assim pudermos chamar); há um quarto e, logicamente, há o restante. O restante é aquilo que Sutherland caracteriza como "mundo físico familiar", no princípio do mesmo texto. Muito poderia ser dito sobre a natureza dessa divisão fundamental, e sobre o trânsito entre esses dois ambientes – que comumente chamamos de "real" e "virtual".

No entanto, basta refletirmos um instante sobre a natureza do "virtual" segundo a contraposição ordinária ao "real", para nos vermos perdidos numa seara de conceitos vagos. Pierre Lévy, em seu livro O que é o virtual?, nos oferece justamente a possibilidade de pensarmos o termo virtual com um mínimo de rigor – pelo menos ao ponto de o concebermos em termos positivos, e não apenas como não-real:

"…o virtual, rigorosamente definido, tem somente uma pequena afinidade com o falso, o ilusório ou o imaginário. (…) O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado no entanto à concretização efetiva ou formal. A árvore está virtualmente presente na semente."

Lévy em sua investigação retoma – da tradição da filosofia escolástica de matriz aristotélica – o conceito de virtual como "o que existe em potência e não em ato". Potência, a grosso modo, como algo que será outro algo por fim (finalidade), mas que ainda não o é – que, em suma, nos coloca o problema do ser algo, por não simplesmente já o ser.

Da investigação profícua de Lévy a partir dessa reconceituação podemos nos valer pelo menos de um alerta – invocar o não-real por outro nome pode ser uma armadilha conceitual. Nesse sentido, por ora, o mínimo que podemos fazer aqui é evitar o uso apressado do termo "virtual" para classificar o quarto de Sutherland, com receio de falarmos mais do que aquilo que podemos justificar. Assim também evitamos a definição perigosa do quarto de Sutherland em contraposição à realidade. De fato Lévy tem argumentos suficientes em seu livro para nos fazer imaginar que o quarto de Sutherland pode contribuir para essa discussão terminológica com alguma novidade, mas que seria preciso dedicar então muitas palavras a essa hipótese; mais palavras do que temos disponíveis aqui.

Desse modo o que podemos dizer desse local extraordinário? O quarto é uma espécie de entre colchetes da realidade familiar. No quarto, tudo o que rege o restante fora do quarto pode estar em suspenso – nesse caso, mais obviamente, as regras de funcionamento ordinárias da matéria. Assim podemos perceber como para Sutherland é impossível partir do reconhecimento de uma diferença fundamental entre "ambientes" sem supor que regras diferentes de funcionamento desses ambientes são uma possibilidade:

É como olhar o Mundo da Maravilhas Matemático através de um espelho mágico. (…) Trabalhando com monitores de fenômenos matemáticos nós podemos aprender a conhecer tais fenômenos assim como nós conhecemos nosso mundo natural. Esse conhecimento é a principal promessa dos monitores de computador. [2]

A matemática seria então aqui a base comum para regras de funcionamento de realidades diferentes – já que podemos encontrar nos axiomas matemáticos algo de irrevogável, na medida em que eles engendram seu próprio sistema de relações.

Mas vemos ainda mais questões nessa proposição. Se esquecermos por um momento o problema específico da matemática veremos que, invertendo o encadeamento do argumento de Sutherland – que a princípio que nos levaria do familiar ao radicalmente novo, passando pela construção de um artifício (ultimate display) –, esbarramos no problema do propósito desse artifício, que independe absolutamente do seu funcionamento matemático. Imaginando que hipoteticamente já estaríamos de posse desse artifício, a pergunta é: de que nos serve esse quarto? De que nos serve senão para vivenciarmos experiências impossíveis nos "ambientes restantes"? Brevemente: qual é o propósito desse colosso da técnica humana? É apenas fruto de pura curiosidade?

Talvez a resposta de Sutherland esteja implícita na própria constituição do quarto, sobretudo se agora nos concentrarmos na resposta "a matemática". Mesmo que esta nos ofereça "novos mundos" a serem explorados, qual é então o propósito dessa investigação, senão a descoberta de novas relações intrínsecas ao pensamento matemático? E se lembrarmos que a matemática é de fato o fundamento para o nosso progresso técnico – ao ponto da construção desse aparato depender necessariamente desses axiomas –, o risco que fica evidente é que a resposta de Sutherland (por nós suposta) pode apontar para uma tautologia: a técnica que evolui em prol da evolução da própria técnica. Afinal o quarto é o produto de uma tecnologia que só é possível se a regras matemáticas permanecem inalteradas. O que nos salva da retroalimentação positiva das relações matemáticas? Arriscamos encontrar aqui a noção de "experiência" nas palavras do autor:

Um monitor conectado a um computador digital nos dá a chance de ganhar familiaridade com conceitos irrealizáveis no mundo físico. [3]

Para considerarmos propriamente o peso que damos a palavra "experiência" na nossa investigação, consideremos por ora que a ênfase da frase não recai sobre os substantivos principais como "monitor" ou "computador digital" ou "conceitos", mas sim sobre a construção "nos dá a chance de".

Como é possível que esse aparato nos forneça "uma chance" que não encontramos em outro lugar – a saber o restante da realidade? A aposta desse texto é que a possibilidade dessa "chance" não advém apenas da sofisticação técnica do monitor último (sua resolução, seu grau de sinestesia, o ajuste do tempo instantâneo, etc), mas também, fundamentalmente, da natureza do usuário como usuário, isto é, como ser que não apenas participa do mundo físico, mas que simultaneamente se dispõe à experiência (está lá, em primeiro lugar), e que também apresenta vetores capazes de mudar qualitativamente o que acontece no quarto (expectativas, atenção, memória, etc).

Onde estaria a linha de corte entre o que o sistema é capaz de produzir e o que é atributo do usuário? A palavra "experiência" já sugere a dificuldade de um corte – ela talvez possa ser pensada, toscamente, como um "entre"; entre o sistema em sua capacidade técnica e o usuário como usuário.

Podemos pensar em uma analogia simples. O mesmo homem que é capaz de produzir projetores de imagens de alta frequência (60 quadros por segundo, por exemplo), é incapaz, in natura, de perceber qualquer diferença visual a partir dos 30 quadros por segundo, na média. De certa forma estamos acostumados a pensar que nossa habilidade técnica excede e muito a nossa capacidade de percepção; mas por que então nos preocupamos tanto com o desenvolvimento técnico pretensamente ilimitado dos nossos artifícios?

Se há um limite para a experiência, podemos crer que Sutherland escreve com a consciência desse limite. Seria talvez uma ingenuidade nossa imaginar que o autor pressupõe que os habitantes do quarto em questão seriam capazes de experimentar qualquer coisa que fosse programada. De fato isso significa que, se queremos determinar com precisão o objeto de nosso estudo – a relação entre o usuário e máquina – precisamos considerar de imediato a parcela mais limitada dessa relação: a saber, nós.

Podemos pegar um atalho através do problema da experiência em ambientes controlados na definição sucinta do conceito de "presença" apresentado pelo International Society for Presence Research. Nesse verbete destaca-se o papel fundamental que a ilusão cumpre na dinâmica da experiência em ambientes desse tipo:

Presença é um estado psicológico ou uma percepção subjetiva na qual determinado indivíduo, passando por uma experiência gerada e/ou filtrada por meio de tecnologia, falha em reconhecer o papel da tecnologia no processo. [4]

A "falha" nesse caso é estrutural; sem ela o meio através do qual o conteúdo é veiculado se tornaria ele mesmo um conteúdo. No entanto, o uso dessas duas palavras – "meio" e "conteúdo" – já indica, por sua vez, um problema próprio, anterior a qualquer consideração específica do meio: como sabemos que o que estamos percebendo não é, ou o fruto de um meio que ainda não foi descoberto, ou um meio para um conteúdo que ainda não fomos capazes de perceber? Há uma reversibilidade inescapável no uso desses termos, que traz dúvidas sérias quanto a possibilidade da ilusão no quarto de Sutherland diferir de qualquer outra ilusão supostamente mais ordinária fora do quarto.

Ora, repetindo aqui o passo atrás que Lévy dá em seu argumento – ao considerar a diferença que há entre o "virtual" e a "ilusão" –, podemos com segurança anteceder ao filósofo tipicamente moderno, notório por seu método baseado na dúvida hiperbólica: Descartes.

Não teríamos nas reflexões pormenorizadas do filósofo o protótipo do estado de suspensão advindo do escrutinamento da matéria? Na primeira Meditação, Descartes coloca em poucas palavras a reticência que qualquer investigador (tipicamente o cientista) mantém diante dos dados puramente sensoriais:

Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.

A primeira conclusão dentre as inúmeras dessas meditações, é a de que o conhecimento propriamente dito do mundo só é possível no espírito, através da razão e da reflexão, a despeito da mutabilidade das experiências sensoriais. Seria demais supor que Sutherland não está preocupado com a validade científica dos fenômenos do quarto? Não seria leviano pensar que Sutherland propõe apenas uma nova forma de entretenimento? Se os monitores são de fato uma promessa de conhecimento, qual é a contribuição científica do estímulo das sensibilidades humanas?

Essas dúvidas nos recordam que o problema já colocado pela filosofia moderna do século XVII levanta precocemente os fundamentos de qualquer relação homem-máquina: o que devemos esperar das nossas concepções? Como podemos ter certezas que fundam conhecimentos? Qual a base de comparação entre elementos constantemente mutantes?

De tal modo essas inquietações estão implícitas na proposição do quarto de Sutherland, que encontrarmos nos recintos onde Descartes supostamente escreve, uma descrição feita possivelmente por um visitante do quarto de Sutherland, ao se deparar com os seus objetos:

Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de ser tirado da colméia: ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém ainda algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza, são patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo encontram-se neste. Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo: o que nele restava de sabor exala-se, o odor se esvai, sua cor se modifica, sua figura se altera, sua grandeza aumenta, ele torna-se líquido, esquenta-se, mal o podemos tocar e, embora nele batamos, nenhum som produzirá. A mesma cera permanece após essa modificação? Cumpre confessar que permanece: e ninguém o pode negar. O que é, pois, que se conhecia deste pedaço de cera com tanta distinção? Certamente não pode ser nada de tudo o que notei nela por intermédio dos sentidos, posto que todas as coisas que se apresentavam ao paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao tato, ou à audição, encontram-se mudadas, e, no entanto, a mesma cera permanece. [...] Consideremo-lo atentamente e, afastando todas as coisas que não pertencem à cera, vejamos o que resta. Certamente nada permanece senão algo de extenso, flexível e mutável."

Notemos o estranhamento sentido pelo observador. Que uma cadeira produzida por programação no quarto de Sutherland seja boa o suficiente para sentar, não duvidamos. O problema é se há alguma mudança no estatuto das outras cadeiras "naturais"; como o usuário irá encarar todas as outras cadeiras no mundo real após a experiência no quarto? Não há nesse caso a possibilidade do usuário apresentar receio em relação ao seu próprio aparato de percepção? E, por outro lado, sabendo que se trata de uma sala onde a matéria é controlada por um computador, não teria o visitante dúvidas de antemão a respeito de qualquer objeto? Imaginemos que uma cadeira não programada seja colocada dentro do quarto – não será ela tão duvidosa, quanto qualquer objeto surgido por programação? Isso nos leva ao segundo ponto: o que Descartes faz nessa descrição é nos oferecer uma dúvida profunda do que significa "matéria".

Nesse ponto valeria a pena nos demorarmos, se assim for possível. Que significa a res extensa (coisa extensa) nos escritos de Descartes? Coincidiria essa definição com as mais recentes descobertas da física subatômica? É disso que trata Descartes adiantadamente?

Talvez possamos encontrar novamente um atalho através do montante de bibliografia sobre as teorias da constituição do mundo físico; esse atalho, a maneira de Descartes, pode ser descoberto em nós mesmos. Isto é: pouca importa qual o dado de trabalho do computador de Sutherland – se são átomos, se são sub-átomos, etc –, podemos conceber teoricamente o fundamento da experiência do usuário desse quarto tendo em vista reduzidamente o modo como os elementos desse quarto aparecem à consciência.

Retomamos aqui o ponto já defendido logicamente: se na relação entre homem e máquina – ou dito de outra forma, entre homem e artifício humano – a percepção humana está aquém das capacidades humanas de realização técnica (como no cinema, por exemplo), basta então que tomemos por base o que esse usuário é capaz de representar para si mesmo a cada condição.

Uma especulação simples pode revelar o sentido aparentemente hermético dessa proposição: por que seria necessário conceber todos detalhes (e todas as partículas) do verso de uma cadeira que não está visível do ponto de vista momentâneo do usuário? Por que o computador precisa manter objetos e características que não estimulam certos sentidos do usuário em certos instantes: como as cores dos objetos que estejam às costas do usuário? Por que, em última instância, apresentar uma cadeira que nos parece uma cadeira?

E por fim, mas não de maneira conclusiva, por que programar objetos e simular estímulos aos sentidos, se o cérebro do usuário é também matéria diretamente manipulável? E se isso é uma possibilidade real, quem nos garante que não estamos nesse momento, cada um de nós, num quarto de Sutherland?

Poderíamos incorrer no risco de cometer um grande anacronismo ao ver tantos argumentos já dispostos nas meditações de Descartes, mas vale a pena no mínimo relembrar que os problemas relativos a separação radical entre pensamento e matéria estrearam parte do seu vocabulário com essa tradição filosófica, do qual Descartes é o primeiro a ser citado – nada nos impediria de prosseguirmos, num capítulo seguinte, com Immanuel Kant e sua filosofia transcendental, encontrando talvez conexões mais diretas com as ciências exatas.

Mas por um momento reflitamos sobre os problemas imediatos levantados pela manipulação direta da matéria do usuário. Mesmo que o usuário seja constituído das mesmas partículas fundamentais que o computador é capaz de manipular, não seria apressado supor que o usuário tem o mesmo estatuto que a cadeira (ou qualquer outro objeto) dentro do quarto? Aliás, não seria desconsiderar de imediato o usuário como usuário, isto é, como finalidade última da existência do quarto? Esse o ponto ao qual nós devemos nos ater – o usuário é o fundamento do quarto, na medida em que ele constitui um lugar, um ponto de vista, a partir do qual todo o quarto se estrutura.

Essa é a única contribuição possível num texto dessas dimensões: o usuário não apenas adentra um quarto onde as regras de funcionamento diferem daquelas que ele está acostumado. O usuário é o dado que o computador precisa considerar em suas simulações para que haja qualquer sentido nas suas operações. Isto é, se, do contrário, considerarmos o visitante um adendo posterior as simulações do quarto, nem mesmo será possível a ele compreender o quarto como um ambiente paralelo válido – no qual ele pode imergir, interagir, aceitar a ilusão de que não há um computador manipulando a matéria, etc –, dadas as suas limitações cognitivas básicas.

Acreditamos que nesse ponto estamos seguros: qualquer que seja a simulação do Mundo das Maravilhas Matemático, ainda assim esta deverá estar de acordo com as limitações cognitivas do visitante do Mundo das Maravilhas Matemático. Do contrário, ele será incapaz de usufruir aquilo que está sendo oferecido.

Esse é o "lugar da platéia" do sistema – para que a experiência seja possível o usuário tem que ser de uma qualidade diferente do restante da simulação. Ou seja, ele funda uma posição privilegiada a partir do qual todas as decisões da simulação se estruturam. Sem essa espécie de coordenada zero, mesmo as possibilidades mais complexas não são percebidas, e portanto, podemos dizer, se tornam inválidas tanto quanto as regras matemáticas já em funcionamento no mundo real mas que no entanto permanecem inacessíveis à estrutura da nossa percepção.

Façamos mais uma regressão. Citamos o cinema como exemplo de tecnologia que pressupõe o limite humano de percepção – há no entanto exemplos anteriores ao cinema que podem nos revelar mais da relação homem-máquina em contextos de simulação complexa. Tenhamos em mente as atrações de entretenimento, populares no século XIX nas grande metrópoles européias, conhecidas como diorama e panorama. Nos concentremos unicamente nos dioramas, inventados por Louis Jacques Mandé Daguerre.

Como desenvolvimento das grandes paisagens de 360° pintadas em salões redondos (chamadas panoramas), os dioramas, apesar de apresentarem um campo visual mais limitado por questões técnicas, eram animados em tempo real, apresentando no geral de paisagens que sofriam modificações graduais como incêndios ou tempestades. Essas simulações eram capazes, por seu grau de acabamento, de produzir um efeito assustador para o público da época.

Para que esse efeito pudesse ser alcançado, os dioramas precisavam de teatros construídos especialmente para esse fim. Isso significa que todo o aparato técnico estava determinado para trabalhar com tal granulosidade que a percepção de paisagens reais que se alteram sutilmente ultrapassava qualquer desconfiança do observador sobre a infraestrutura dessa ilusão – luzes, espelhos, sobreposição de imagens, polarizadores, músicas de efeito sinestésico, etc.

O que poderíamos reencontrar nos dioramas de fundamental para a proposta do monitor último de Sutherland? Se retomarmos a importância que demos ao estatuto especial do usuário dentro do sistema, veremos que no diorama a diminuição do campo visual (necessariamente menor que os 360º dos panoramas) era compensada por um refinamento da simulação em termos de tempo, isto é, a alteração da paisagem diante da platéia.

O que temos nesse caso que não temos no cinema? Certamente a noção de imediatidade – por mais que o espetáculo do diorama seguisse um roteiro, ainda assim a consciência de que não se tratava de um projeção de elementos pré-compostos (como na edição do filme), e sim de um acontecimento ao vivo, dava um novo significado às imagens vistas pelos espectadores. Não seria esse um exemplo de que a mudança mais crítica para a experiência entre homem e máquina acontece na consciência do primeiro? É a consciência do usuário que torna o espetáculo um acontecimento extraordinário: não uma tempestade normal, não um incêndio normal.

Novamente, mais está em jogo aqui. A platéia tem seu lugar, e é partir dele que se considera realísticos a paisagem pintada e os efeitos de luz e sobreposição. Se a platéia se aproxima mais do que o previsto, a ilusão pode facilmente se desfazer – vê-se o jogo de luz e espelhos, percebe-se a materialidade da pintura. Temos aqui descrita nada mais do que a importância radical da resolução como item relativo do sistema. De súbito poderíamos nos perguntar: qual seria a resolução ideal do quarto de Sutherland? Qualquer uma acima do nível da percepção humana. Não temos a experiência direta dos átomos; o que significa então programar seu comportamento? Se o computador fosse capaz de reconstruir uma cadeira "boa para sentar" com unidades maiores, qual seria a diferença para o humano que senta? Os dioramas reiteram nossa hipótese: de que o quarto de Sutherland não precisa desvendar e manipular os elementos constitutivos da matéria no Universo para provocar experiências válidas para o usuário.

Não é difícil especular sobre o que seria a vertigem provocada por uma resolução supostamente infinita. É como se, por um instante, adentrássemos ao edíficio-tema do romance A vida modo de usar do escritor francês George Perec, e participássemos da sua inesgotabilidade:

Um salão vazio no quarto andar à direita. No chão, há um tapete de sisal trançado cujas fibras se entrelaçam de maneira a formar motivos em feitio de estrelas. Na parede, o papel pintado, uma imitação de cretone de Jouy, representa enormes navios a vela, de quatro mastros do tipo português, armados de canhões e colubrinas, preparando-se para entrar no porto; a bujarrona e a brigantina estão enfunadas; os marinheiros, trepados nas cordoalhas, ferram as outras velas.

Não é difícil imaginar que um salão vazio pode conter "enormes navios a vela" e "marinheiros, trepados nas cordoalhas", se nos dispusermos a continuar a investigação apenas para encontrar em cada elemento novos elementos: o rasgo na roupa dos marinheiros, o furo no casco do navios, etc.

Apresenta-se então diante de nós um enorme campo de investigação sobre a contribuição da ilusão e da consciência do usuário para as experiências em contextos de imersão controlados. Se estivermos dispostos a dar mais um passo atrás encontraremos talvez resultados inesperados da relação complexa entre esses dois modos da percepção. O que fica posto é a certeza de que o usuário cumpre um papel muito além do formal dentro do sistema – e que no quarto de Sutherland podemos encontrar com nitidez os limites impostos pela própria estrutura da percepção.


Notas

  1. The ultimate display would, of course, be a room within which the computer can control the existence of matter. ^
  2. It is a looking glass into a mathematical wonderland. […] By working with such displays of mathematical phenomena we can learn to know them as well as we know our own natural world. Such knowledge is the major promise of computer displays. ^
  3. A display connected to a digital computer gives us a chance to gain familiarity with concepts not realizable in the physical world. ^
  4. "Presence (a shortened version of the term “telepresence”) is a psychological state or subjective perception in which even though part or all of an individual’s current experience is generated by and/or filtered through human-made technology, part or all of the individual’s perception fails to accurately acknowledge the role of the technology in the experience." ^

Referências