Exercícios de cartografia (2014)

Felipe Kaizer


Material para o workshop de construção de mapas em novembro de 2014 no Sesc Pompéia.


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Estratégias para o curso


Desafio


Opções de mapa


Sobre história (Apresentação em slides)

Não conheço nenhuma história da cartografia. Não duvido que existam algumas. De toda forma me parece que qualquer versão dessa história precisa começar antes do nascimento da geografia. Todas as civilizações olharam primeiro para o céu e utilizaram seus fenômenos cíclicos para contar o tempo. O começo da cartografia é indissociável da história da astronomia, pois no princípio era o céu.

As cartas estelares eram, desde o início, mais do que mapas. No caso da carta suméria (de Níneve), há não apenas um instantâneo do céu, mas também a indicação de um movimento (de Órion). Isto é: trata-se não apenas de um retrato, mas de um instrumento de leitura do funcionamento do céu. O mesmo ocorre do outro lado do mundo, na civilização asteca. Esse é um exemplo de um calendário solar, que indica os já conhecidos 365 dias. É de pouco antes dos espanhóis chegarem, e prova a utilidade dessa forma de notação ao longo de milênios. Bem ou mal, já encontramos um gênero de representação que nada tem a ver com o que encontramos em Lascaux. São os primórdios da notação científica, ainda indistinta da escrita e da simbologia sagradas.

Isso é possível de se perceber na maneira como os egípcios (herdeiros astronômicos dos sumérios) viram a Via Láctea. Um fenômeno visual tão patente como esse (uma mancha que caminha pelo céu) não passou despercebido a praticamente nenhuma civilização. Os egípcios conceberam a galáxia como a deusa da noite, Nut, que cobre a terra. Nos hieroglifos é possível perceber que a representação simbólica se baseia na forma da trajetória da galáxia, vista da Terra. É um mapeamento incipiente, que ganha complexidade com um rasgo fundamental que parte o mundo (celeste) em dois hemisférios.

De uma maneira mais extrema, é possível imaginar que os egípcios construíram outro tipo de mapa, menos óbvio. De fato, o alinhamento das grandes pirâmides com a constelação de Órion (que aponta o Sul) é nada mais do que o resultado de uma tentativa de mapear o céu na terra. O complexo de construções é ele mesmo um instrumento de medição e uma representação visual de um fenômeno natural. Nesse caso ancestral, encontramos também uma problematização do que significa escala.

Assim como as pirâmides, Stonehenge (e toda a série de construções similares dessa mesma época) conjuga as noções de símbolo (religião), instrumento (ciência), mapa e arquitetura (arte e construção). Não é possível dizer exatamente onde começa uma coisa e termina a outra. Stonehenge é um lugar para ver, para medir, para estar, para recordar. É uma síntese dos ciclos cósmicos traçada sobre a superfície da terra.

Um desejo de síntese mantém a história dessa genealogia de representação em andamento. Um dos primeiros mapa-múndi reconhecido como tal é da Babilônia de seiscentos anos antes de Cristo. A forma circular é provavelmente um eco dos mapas da abóboda celeste. No centro, tem-se as cidades, os rios e os canais, circundados por um anel oceânico. Essa é a origem dos mares de monstros desconhecidos, que habitarão o imaginário dos europeus séculos depois. O mundo conhecido cabe facilmente na palma da mão, sem constrangimento algum.

Mas os gregos chegam e mudam tudo. Homero é alguém que expande o reino do conhecido, mas ainda sem superar a ideia de limite. A curiosidade e o espírito investigativo levam gerações subsequentes de pensadores a expandir e revisar o mundo, de acordo com o acúmulo de informações. Eratóstenes, no entanto, é uma exceção. Além de medir a circunferência da Terra 250 anos antes de Cristo – e, obrigatoriamente, mudar o estatuto desse limite –, ele desenvolve um sistema de notação que se vale de linhas latitudinais e longitudinais. É o começo de uma desintegração da circularidade necessária do mundo. Porém, a frequência dessas linhas ainda é errática, e depende de cidades notórias.

Mas Ptolomeu leva essa estrutura a um novo patamar. Suas linhas são baseadas numa medida arbitrária (em graus, minutos e segundos na base 60, vinda dos sumérios), infinitamente expansível e subdivisível. Ptolomeu sabe que a Terra é redonda – com cerca de 40.000 km de perímetro – e por isso deixa avisado que apenas um quarto do mundo é conhecido. Essa é desculpa necessária para a expansão marítima mais de 1000 anos depois. Difícil conceber que um progresso tão grande possa ser feito tão cedo. De fato, o sistema de coordenadas dele é a base de tudo que usamos ainda hoje, incluindo o ubíquo Google Maps.

Isso não é tudo. Ptolomeu colocou mais questões determinantes para o ato de mapear. Em primeiro lugar não há evidências que levem a crer que ele saiu alguma vez de sua cidade natal, Alexandria. Como foi possível então descrever o mundo inteiro com tanta precisão? Simples: indo à biblioteca. Ptolomeu recolheu e compilou diversas informações de viajantes, marinheiros e legiões romanas. Isso, aliado a um sistema de coordenadas, permitiu que ele, em segundo lugar, tabelasse todos os pontos em um mapa. E no final foi isso que nós herdamos: nenhuma imagem produzida por Ptolomeu chegou até nós, apenas as tabelas de coordenadas sobreviveram. Isso demonstra que não há cartografia sem dados.

O império romano chega invariavelmente ao seu fim. Toda cosmologia muda a medida que uma nova civilização suplanta a anterior. O Cristianismo empresta uma novo princípio ao rearranjo social nos espólios das metrópoles. A Idade Média promove temporalidades e espacialidades totalmente diferentes do mundo grego, egípcio ou sumério. Toda a sua cosmologia está baseado no texto bíblico, e as narrativas tem mais realidade que a observação dos fatos. Logo, não surpreende que os mapas dessa geração sejam tanto espaciais quanto mitológicos. A distribuição do homem na Terra corresponde ao desígnio divinos, e a caminhada pelo mundo termina com um retorno ao paraíso. A queda, a cruxificação e o apocalipse estão presentes aqui e agora, como eventos históricos e eternos. Céu e Terra estão em intercâmbio constante.

A simbologia cristã não apenas ocupa o território dos mapas, mas determina a própria forma do mundo. Nada impede que o circularidade imemorial da terra coincida com o corpo de Cristo. Essa coincidência simbólica está na base daquilo que será o dispositivo mais sofisticado saído da Idade das Trevas: a catedral. De fato, o interior da catedral é mais real que seu exterior: ali ressoa o sentido do mundo. Fora, a corrupção grassa e permanece num estado de ininteligibilidade. Dentro da Casa de Deus tudo encontra seu devido lugar.

Mas uma classe de pessoas não parou de olhar para o céu noturno. Copérnico retoma a cosmologia ptolomaica e confere a validade das medidas atualizadas. Em função da incongruência que surge dessa comparação, Copérnico precisa atualizar a própria teoria. Esse o gatilho para uma revolução lenta, que se estende pelo menos até Galileu. Mais ou menos na mesma época a antiga cartografia grega retorna a Europa, na Itália. Os modelos medievais são paulatinamente substituídos pelo sistema antigo de coordenadas. Mapas cada vez mais fiéis às distâncias são produzidos, e a navegação prospera enormemente. Em 1488 os portugueses cruzam o Cabo da Boa Esperança e em 1492 Martin Behaim dispõe o mundo ptolomaico atualizado sobre uma esfera. Entre a Península Ibérica e a costa leste da Ásia sobra um pouco de oceano. Colombo parte em direção às Índias e o resto é história. Novos mundos estão prestes a ser descobertos e mapeados, tanto na Terra quanto no Céu.

Mas essa não é toda a história. Pouco antes do chamado Renascimento no Mediterrâneo, algo estranho já está acontecendo na Europa depois do ano 1000. Uma nova fronteira é devassada. Uma fronteira interna, contraposta a do horizonte marítimo. Trata-se da invasão do corpo e da aceleração da história da medicina. É difícil reconhecer a radicalidade da violação da superfície da pele; tenhamos em mente que nem Hipócrates nem Galeano jamais incitaram a prática da cirurgia ou descreveram a anatomia para além das meras analogias astronômicas e filosóficas. O corte com essa tradição é tão brusco que não podemos concebê-lo como sendo um fator de desenvolvimento interno. A única explicação possível é que o distúrbio provocado por um agente alienígena.

É nesses termos que devemos compreender a chegada e permanência dos mouros na Península Ibérica: como um conditio sine qua non do Renascimento. Os islâmicos – assim como os gregos antigos – preservaram, recombinaram e contribuíram para o arcabouço de conhecimento de todas as civilizações com que tiveram contato: notoriamente a grega, a indiana e a chinesa. Entre as milhares de novidades e redescobertas que adentram o continente europeu, estão os estudos anatômicos e os tratados de ótica. Muito antes do Renascimento italiano, médicos árabes já produziam mapas detalhados do corpo humano e dos seus subsistemas. Essa prática deve ter tido um efeito profundo e duradouro na cosmologia vigente do mundo medieval. Só isso pode explicar o trabalho posterior de sujeitos como Andreas Vesalius e Leonardo da Vinci.

O último, inclusive, com sua visão mecanicista do universo, produz imagens elaboradas de diversos orgãos sem corpo, algo impensável dentro dos cânones. Leonardo e todos os anatomistas depois dele foram movidos por um espírito verdadeiramente científico e tinham grande confiança no poder da observação direta. Essa combinação deu origem a representações cada vez mais realistas do mundo interior. Paradoxalmente, essas representações, se mostraram, ao longo dos séculos 18 e 19, cada vez mais ambíguas e misteriosas. A metáfora do mapa territorial (utilizada para os atlas corporais) se tornou cada vez mais opaca, e as imagens científicas do corpo e da terra passaram a coincidir. Mesmo aos nossos olhos hoje, um crânio da Anatomia de Gray nada mais é, ao final, do que um continente estrangeiro.

Essa transformação no progresso dos mapas se manifesta, a partir de meados do século 19, mesmo nas formas mais convencionais de representação do território. O trabalho de Charles Joseph Minard é o melhor exemplo de uma complexificação das camadas e narrativas veiculadas pelos mapas. Essa nova geração de formas de representação é concomitante a um crescente entendimento estatístico do mundo, perfeitamente compreensível numa era industrial. O que vemos no fim é uma desterritorialização do mundo conhecido, ou, dito de outra maneira, a redução do território a um dado possível em um sistema de representação.

O exemplo marcante dessa nova fase dos mapas é a imagem criada pelo sanitarista John Snow em Londres. No combate ao surto de cólera de 1854, Snow traça a frequência e a localização de todas as mortes recentes, assim como todas as saídas de água em uma região da cidade. Com isso ele é capaz de reconhecer a saída de água contaminante estatisticamente mais provável. Nesse ponto, vemos uma virada no significado dos mapas de acordo com uma mudança do uso desse sistema de representação: a partir desse ponto os mapas servem não apenas ao nosso deslocamento mas à nossa busca pelo reconhecimento de padrões.

Exemplos contemporâneos dessa nova prática abundam. A crescente busca por padrões explica porque as referências visuais dos espaços tendem a desaparecer, deixando no papel apenas um senso mínimo de distância. Naturalmente, mapas da terra, do céu e do corpo começam a se assemelhar. Ângulos e proporções, agora livres dos limites naturais, deformam-se para destacar os aspectos mais relevantes de um conteúdo ou tema. O mapa do metrô de Londres é apenas um caso de reinterpretação do território que se estende a um passado mais remoto. Subitamente retomamos hoje como modelo aquilo que um dia foi excepcional e de certa forma mostruoso: estradas longitudinais romanas, esquemas abstratos de cidades, disposição geometrizada de elementos, etc.

Hoje os mapas não são mais do que casos especiais dos gráficos, e os gráficos não são mais do que a comparação visual de dados. O mapa como forma de representação encontrou o seu limite interno. Daqui para frente é preciso se questionar se um mapa faz jus a um território ou situação que se quer comunicar. Não há mais naturalidade alguma na escolha dos modelos cartográficos. O desafio é portanto encontrar coisas ou lugares que podem ser motivos de um bom mapa.


Referências