Design Ex Machina

Felipe Kaizer


A todos os projetistas que, saudavelmente, já cogitaram abandonar o exercício da profissão.


Projeto de conclusão de curso de graduação em Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro orientado pelo Prof. João de Souza Leite e defendido no segundo semestre de 2006. Revisado e autopublicado em 2014.

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Resumo: O presente estudo discute a relevância das considerações usuais da atividade de projeto à luz da teoria da ação da pensadora alemã Hannah Arendt. Não se busca aqui conclusões definitivas sobre as motivações do design, mas, antes, se procura entender qual pode ser a contribuição dada pela teoria política arendtiana à crítica e ao exercício do design. O principal objetivo é, portanto, tentar perceber quais são as implicações imediatas, as impossibilidades, os impedimentos e as condições das suposições sobre o caráter político da atividade de projeto diante dos desafios colocados por autores como Arendt, Zygmunt Bauman, Aristóteles, Herbert Simon, Walter Gropius, entre outros.

Palavras-chave: design, política, projeto, Hannah Arendt, modernismo

Abstract: The present study discusses the relevance of usual considerations about project activity under the light of the action theory of the german thinker Hannah Arendt. Since it is not its aim to conclude about motivational aspects on design, this work offers some understanding about the contributions of the arendtian political theory to design criticism and practice. Therefore, the main objective is to perceive the immediate implications, impossibilities, boundaries and conditions of a supposed political aspect of projecting, challenged by the thought of authors like Arendt, Zygmunt Bauman, Aristotle, Herbert Simon and Walter Gropius among others.

Key words: design, politics, project, Hannah Arendt, modernism


Agradeço, em primeiro lugar, a João de Souza Leite pelo incentivo, pela confiança, pela orientação e pelas leituras comentadas. A Luiz Antonio Luzio Coelho pela atenção às primeiras formulações e divagações. Especialmente a Eduardo Jardim pelas elucidativas conversas, discussões, orientações e apontamentos finais, sem os quais talvez este projeto jamais teria sido finalizado. A Pedro Duarte pelas leituras e comentários precisos. Devo também a Vera Damazio, Eduardo Berliner e Mariana Aurélio horas de dedicação. Por fim, à paciência de todos os demais interlocutores, entre eles João Doria, Leon Vilhena e Maurício Kopke.


O título é uma corruptela da expressão latina deus ex machina, oriunda do antigo teatro grego, no qual em determinadas peças, o protagonista era libertado de uma situação de impasse pela intervenção direta e extraordinária de um deus capaz de transformar a realidade a seu favor novamente. Ex machina quer dizer da máquina, indicando o procedimento utilizado no palco de trazer à cena o deus suspenso por um guindaste preso a uma torre. O termo passou a se a referir na literatura à toda mudança inesperada e milagrosa dentro de uma peça de ficção.


Sumário


Introdução ^

Seria um atestado de ignorância em relação ao significado do design e ao significado da política a afirmação do design como atividade evidentemente política. Não é o caso de redefinir um ou outro termo, mas revelar que a definição do design como ação é mais complexa do que nossa moralidade a princípio poderia supor. Não há como, num trabalho dessas dimensões, contudo, comprovar ou reprovar essa hipótese; antes, é preciso mapear o enunciado diagnosticando as possibilidades e os impedimentos que tal suposição determina.

Investigaremos, na primeira parte, o design como atividade pragmática, isto é, o design industrial moderno. Cabe atentar às premissas das condições de tal definição e tentar perceber se é possível encontrar brechas pelas quais possamos enxergar uma distinção entre o design, o industrial e o moderno.

Na segunda parte, em contraposição à anterior, veremos o que disseram os designers defensores de uma responsabilidade do projeto. Segundo eles, quais são as motivações de tal enunciado e os compromissos que competem ao projetista, nesse caso atormentado então pela condição de mero executor técnico de premissas determinadas em uma dimensão externa à atividade.

Aqui, o que pareceria uma simples contradição entre definições, na verdade se revela como o problema do significado do design: ele depende ou não de sentenças proferidas externamente para existir? Serve a algum propósito ou delimita as próprias proposições?

Chega o momento de entrar em contato com um pouco das ferramentas do pensamento político tradicional e com a novidade das considerações da pensadora alemã Hannah Arendt, que escreve a partir das experiências de crise política do século 20. A autora trará profundidade às discussões sobre liberdade, autoridade e política, através de reformulações teóricas que visam caracterizar a exclusividade da ação humana.

Tendo isso em mente, resta-nos vislumbrar, ao término do trabalho, o problema central do significado do design como ação política, isto é, como fim em si mesmo: quais são as condições para esta tese? Veremos que não há resposta fácil à questão, no entanto, a própria consciência da profundidade dessa definição já nos permite ter ideia do campo a ser explorado e justifica este breve texto.

Devemos estar preparados para encontrar mais problemas do que pistas e consequências mais drásticas do que elucidadoras. A teoria é que nos permitirá decidir que preço pagar para transformar praticamente a realidade a nosso favor.


Previsão e controle ^

Com efeito, se cada instrumento pudesse, a uma ordem dada ou apenas prevista, executar sua tarefa (conforme se diz das estátuas de Dédalo ou das tripeças de Vulcano, que iam sozinhas, como disse o poeta, às reuniões dos deuses), se as lançadeiras tecessem as toalhas por si, se o plectro tirasse espontaneamente sons da cítara, então os arquitetos não teriam necessidade de trabalhadores, nem os senhores de escravos.
— Aristóteles

Design, design moderno e design industrial moderno ^

John Christopher Jones no princípio de seu livro Design Methods se pergunta “O que é designação?” [1] e em seguida lista uma série de definições e descrições que atenderiam a essa pergunta em busca do que há de comum a todos: a referência constante ao processo de design, aos seus ingredientes [2]. O que o autor propõe, em contraposição às discrepâncias oriundas da falta de consenso sobre a natureza do design, é a possibilidade de se definir a atividade pelos resultados que produz:

Se procuramos uma base sólida para nossas reflexões, o melhor é olhar para fora do processo em si e tentar definir o projetar pelos seus resultados […] podemos concluir que o efeito do projetar é o início de alguma mudança no mundo das coisas feitas pelo homem. [3] 

Esse procedimento de definir a coisa pelos seus efeitos é o que chamamos de pragmatismo. Tendo sempre como ponto de partida os substratos do fenômeno, Jones se preocupa, nos parágrafos subseqüentes, em demonstrar os processos tradicionais de design diante das intenções de mudanças do mundo construído pelo homem. Somente a partir daí o autor sente necessidade de apontar questões da natureza do design; Jones não só vai dedicar cerca de metade do seu livro para demonstrar a origem desses processos, como também o que é axiomático na atividade de projetar. De fato, tendo em vista que a meta é a promoção de mudança do status quo, a definição do autor se baseia na possibilidade de efetuar essa operação com algum controle, ou seja, de modo efetivo.

O objetivo aqui expresso não é contestar essa equação, mas explorar os limites e as características desse tipo de empreendimento humano, que com o tempo pareceu cada vez mais histórico e menos substantivo: o que subsiste, afinal, às intenções de mudança do mundo? Essa pergunta que nos parece ampliar inicialmente os horizontes e potenciais usos do termo “projeto”, na verdade, só poderá ser devidamente caracterizada ao fim deste trabalho. Antes devemos a Herbert Simon uma definição mais útil nesse primeiro momento. Seu livro The Sciences of the Artificial nos fixará, a princípio, os limites do termo design, assim como a possibilidade de se criar, como desejou o autor, uma ciência do design:

Engenharia, medicina, economia, arquitetura e pintura se ocupam não com o necessário mas com o contingente – não com como as coisas são, mas como as coisas devem ser – em suma, com desígnio. A possibilidade de se criar uma ciência ou ciências do design é tão excepcional quanto a possibilidade de se criar qualquer ciência do artificial. As duas possibilidades se sustentam ou se desfazem juntas. [4]

Simon revela a extraordinariedade e relevância que o termo pode ter quando acompanhamos a tese de que deveríamos conceber uma diferença entre um mundo natural e a ciência que lhe cabe (as ciências naturais, tais como física, química etc.) e um mundo artificial onde as coisas não são dadas, mas construídas segundo algum desígnio, intenção, propósito. Essa ciência do mundo artificialmente construído chama-se design, e, portanto, fica fácil abrigar dentro do termo todo e qualquer empreendimento humano que vise a algum resultado, por meio de decisões conscientes, isto é, de propósitos definidos:

Design […] se preocupa com como as coisas devem ser, com a utilização de artefatos de forma a alcançar determinados objetivos. Podemos questionar se os modos de raciocínio apropriados às ciência naturais são também adequados ao design. Pode-se supor que a introdução do verbo “dever” exige regras de inferência adicionais ou a modificação de regras já implícitas na lógica declarativa. [5]

Essa lógica declarativa de que nos fala Simon é diferente da lógica do design. É a introdução do “dever”, tão necessário ao entendimento do que é projeto, que caracteriza o que o próprio autor chama de lógica imperativa. Esta já carrega em si o primeiro problema a ser apontado: como estabelecer os parâmetros para essa lógica? Não nos cabe responder a tal enunciado, mas perceber o que o autor coloca: se é possível fazer ciência a partir do design, então essa ciência contém uma especificidade que outras ciências não compartilham. A lógica imperativa do “dever”, do “temos que”, traz à tona que o problema fundamental do projeto não é simplesmente o “como fazer”, mas também, e antes, o “por que fazer”. [6]

Todavia, a despeito do que já se possa começar a imaginar, design aqui é toda atividade que vise à construção, manutenção ou adaptação do conjunto de coisas e procedimentos que chamamos artifício humano. Jones não se distancia dessa ideia, e certamente todos os teóricos do design até hoje concordariam com essa definição, que, por mais genérica que pareça, atende à superação dos termos design gráfico, design de produto, design de ambientes, design industrial etc. Ao pequeno universo desse escrito, a fórmula design = projeto é válida, e no momento em que ela não nos servir mais, será alertadamente abandonada.

Não deveríamos, portanto, considerar os binômios design moderno ou design industrial mais do que podemos dizer pelas suas palavras separadamente. O motivo de tal ressalva é que o design, da forma como o conhecemos, segundo alguns desses mesmos teóricos, tem data de nascimento definida. Variando entre a primeira Revolução Industrial e a constituição das primeiras instituições de ensino da profissão, essa demarcação pretende pontuar uma origem clara para um novo tipo de profissional. Aqui, apesar disso, não nos interessa tratar das consequências da profissionalização; se o design existia ou não antes de tais definições não é algo que contribui para os objetivos desta investigação, mas certamente o mundo onde o design foi possível deve ser alvo da tentativa de compreensão, para que possamos entender do que a atividade de projetar é ou não capaz.

Esse mundo é a Modernidade, e o consenso sobre sua origem é mais raro do que no primeiro caso. Tendo seu início no surgimento da cidade/civilização (Argan) ou na eclosão da Revolução Industrial (Mumford), o relevante aqui é que a Modernidade tem uma especificidade inegável, caracterizada tanto por uma mudança da mentalidade quanto por uma ruptura tecnológica que altera radicalmente os meios de produção.

O que nasce na Modernidade carrega de certa forma indícios de sua procedência, seja o cinema, a bomba-atômica ou o design industrial. Se este é ulterior a um design sem sobrenome, outra questão poderia então ser formulada: o design difere do design industrial? Talvez, mas não nos esqueçamos da ordem dessa diferença: o que quer que digamos do design deverá também se aplicar ao design do termo composto, e, caso não se negue a possibilidade do design ser industrial, não haverá contradição em termos. Portanto vale dizer que o design industrial é marcadamente limitado pelas possibilidades da indústria. Assim, não poderíamos esperar que, limitado às demandas de produtividade do sistema econômico-industrial, o design indutrial se preocupasse, mais com outra coisa que não a potencialização e a otimização dos aspectos referentes a esse universo.

Não é a toa que Jones expõe o processo de projeto como uma cadeia de eventos com objetivos imediatos claros. O design industrial deveria respeitar as questões industriais; mas o que não é industrial a partir das revoluções? Se tudo foi realmente incorporado (inclusive as artes no sentido mais amplo) ao novo sistema produtivo, deveríamos nos perguntar se ainda há um design sem sobrenome como o proposto anteriormente. Se não encontramos indícios de sua existência na concretude da realidade, podemos, apesar disso, aceitar sua presença na esfera da teoria que o proporia. Afirmar sua existência pode talvez jamais provocar as mudanças objetivadas pelo próprio sistema industrial, no entanto, se quisermos entender do que trata o assunto, cabe criar e utilizar o instrumental teórico que nos auxilie no escrutinamento das questões mais relevantes ao entendimento. Do contrário, especularíamos vagamente sobre a realidade de causas e consequências que não podemos definir a não ser com o uso da imaginação e da dedução.

Entretanto, não é possível afirmar um design antes do design industrial, mas nada impede que trabalhemos com as duas facetas simultaneamente, assim como considerarmos design e industrial dois nomes diferentes.

Em que essa reflexão se baseia? Na possibilidade de, pelo menos no campo teórico, se afirmar que o design não é necessariamente industrial, mesmo que ainda não saibamos dizer o que ele é. Aqui poderíamos retornar às definições enumeradas por Jones, mas devemos desconfiar que qualquer determinação que façamos pode estar condicionada pela mentalidade industrial que invariavelmente todos nós, desde a Revolução Industrial, compartilhamos. O que fazer então para definir de que design estamos tratando? Talvez uma busca mais atenta revele brechas pelas quais suma ontologia do design poderia ser esboçada.

Poderíamos começar afirmando que o design industrial é sempre movido por alguma espécie de necessidade de projeto de resultado. E isso que parece tão inegável ao design, devemos desconfiar que seja, na verdade, inegável à indústria (Mumford). Afirmamos, então, que nem todas as motivações para a atividade projetual se baseiam em uma demanda de produtividade ou necessidade. Isso poderia ser deduzido, se assim quiséssemos, da definição de Jones, que talvez seja a única nesse caso que exponha a pergunta que contrapõe a assertiva presente em todas as definições que giram em torno do processo de design: por que projetar?

No entanto, se é verdade o que encontramos em Simon, a pergunta será se existe como não projetar. Se todos os níveis do universo artificialmente construído pelo homem exigem design, este não seria o ato-condição de toda a atividade humana que vise construir e manter o mundo? Essa é a única brecha que encontramos para demonstrar que o design não necessariamente industrial existe na medida em que o modelo industrial alcançou todas as esferas da sustentabilidade econômica da criação de novas entidades, mas não sobrepujou todas as dimensões da vida humana. Podemos admitir que o design industrial é uma manifestação industrial da possibilidade da atividade humana de projetar e é regido, em parte, pelas relações próprias que o modelo industrial exige, mas também pelas possibilidades de uma atividade humana que excede e é anterior a essas condições da Modernidade.

Antes de prosseguirmos, devemos rever o problema descoberto nessa explanação: a existência de um design que não seja moderno. Devemos entender o peso dessa cogitação, já que ela revela a distância entre a prática e o que discutimos sobre a prática: o design é um nome moderno e toda dificuldade em dissociar a atividade dos preceitos da Modernidade, ou comprovar sua não necessária relação, surge do fato de até hoje ele só ter sido pensado em termos modernos. Caso queiramos pensar na natureza da atividade independente da sua variante moderna, devemos permanecer alertas à intervenção externa da teoria, capaz de transformar um impasse de reflexão em oportunidade de entendimento.

Sendo o design, indiscutivelmente desde sua nomeação, algo pertencente à esfera pragmática, não deve haver discussão a respeito da relação entre o design e a teoria que não proponha necessariamente a defesa ou o ataque de uma condição de fato; de nada vale uma discussão do design pelo design, apenas a concórdia sobre as formas [7] que presenciamos. Interessa apenas a justificativa para fazer alguma coisa e não outra, de uma maneira e não de outra. Apesar de parecer que não há problema de design a tal pragmatismo de pensamento, veremos que nem só essa visão está implícita no ato de projetar, e que esse mesmo padrão de reflexão será encontrado mais à frente quando investigarmos as características do pensamento político ocidental.

A impossibilidade, à primeira vista, de pensar o design não moderno é sintoma de um pensamento crente no significado absoluto das palavras. Essa seria uma dificuldade menor diante de uma nova explanação sobre a atividade que investigamos se não viesse acompanhada dos pressupostos que todo binômio implica. Assim como devemos, a fim de prosseguir, adotar no nível da teoria um design sem sobrenome, também devemos estar preparados para duvidar se todo e qualquer projeto exige previsão e controle da maneira que a Modernidade industrial propõe. Não há como negar que tais conceitos tenham razão de ser, já que estão pautados na observação empírica dos fenômenos. E é logicamente que todo pragmatismo se baseia no fato de que não existe um problema da realidade a ser discutido: tudo que existe, ou seja, todo fato, é condição. O pragmatismo, por ser um método (James), não se encarrega de estabelecer nenhum critério de certo ou errado (sua lógica permanece declarativa), sendo toda “verdade” pragmática definida por sua possibilidade de corresponder ao fato. A pergunta fundamental, portanto, é: isso nos basta como definição?

Nesse sentido, a metodologia é insuficiente para anunciar o imperativo de como deve ser o mundo, e de quais mudança deve-se operar no status quo. Para que essa designação de ordem prática [8] seja possível, o pragmatismo deve servir de ferramenta para algum tipo de idealismo: aquele que poderá traçar medidas normativas de interferência na realidade segundo alguma intenção que não está circunscrita a noção de eficiência, mas que antes exige desta o cumprimento do seu papel como meio para um fim estabelecido num plano superior.

Esse dualismo entre ideal e pragmática é o que caracteriza o design moderno, e é por isso que não basta apenas uma definição das coisas pelos seus resultados, já que alguma intenção deve definir o que é resultado previamente: todo pragmatismo necessita de um ideal que o diga o que fazer. Portanto, o moderno da equação design industrial moderno visa garantir, a priori, a justificativa necessária a todo empreendimento projetivo.

Essência ^

O que propõe, entretanto, a Modernidade que caracteriza o design moderno industrial? Zygmunt Bauman, no primeiro capítulo de seu livro O mal-estar da pós-modernidade nos dá uma pista do que poderíamos arriscar ser a substância moderna: “o sonho da pureza”. Isto é, a noção de uma essência mesmo. Essa ancestral definição – formalmente constituída logo com os socráticos, descobridores do conceito – encerra em si mesma toda a história da metafísica ocidental, e a Modernidade surge como expressão máxima dessa tentativa de ruptura total com o mundo da instabilidade, das instâncias e do aparente. Poderíamos dizer que a Modernidade é o ápice dessa ideia e, portanto, carrega acentuadamente, por natureza e procedência, todas as propriedades de um movimento radical (em direção à raiz) e revolucionário (volta à origem).

Esse conceito, por estranho que pareça, parece dar conta rapidamente da existência das diversas variantes de Modernismo no mundo. Estas encontram diferentes expressões nas Américas e na Europa sobretudo. E, observando bem, podemos notar que nem todos os modernismos podem se encontrar debaixo do guarda-chuva do universal: a variante norte-americana, por exemplo, percebe na realidade política/econômica a razão da existência e a condição inicial dos projetos, enquanto no Brasil temos uma ruptura com as tradições europeias – francesa sobretudo – em busca de uma brasilidade original. Não é por acaso que essência se relaciona diretamente com identidade, ou seja, com aquilo que distingue o indivíduo ou a nação como única, sendo essa uma questão que ocupou os círculos intelectuais brasileiros na semana de 1922. Já na década de 1960 o movimento concreto no Brasil encontra outra essência no projeto linguístico abstracionista internacional.

Prosseguindo no texto de Bauman, em determinado momento, a noção de pureza é definida justamente como a noção de ordem. Todas as coisas tem um devido lugar no mundo dos homens – inclusive a Natureza –, e a sujeira nada mais é do que algo que esteja fora do lugar [9]. À medida que seguimos esse raciocínio vemos que a própria noção de ordem é intrínseca à possibilidade de manter as coisas sobre controle, de pôr as coisas em ordem:

“Ordem” significa um meio regular e estável para os nossos atos; um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estejam distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita – de modo que certos acontecimentos sejam altamente prováveis, outros menos prováveis, alguns virtualmente impossíveis. Só um meio como esse nós realmente entendemos. Só nessas circunstâncias (segundo a definição de Wittgenstein da compreensão) podemos realmente “saber como prosseguir”. Só aí podemos selecionar apropriadamente os nossos atos – isto é, com uma razoável esperança de que os resultados que temos em mente serão de fato atingidos. Só aí podemos confiar nos hábitos e expectativas que adquirimos no decorrer da nossa existência no mundo. Nós humanos somos dotados de memória e de uma capacidade de aprender; por esse motivo, conferimos benefícios a uma “boa organização” do mundo. Habilidades aprendidas para a ação constituem poderosos bens num mundo estável e previsível; torna-se-iam completamente suicidas, todavia, se os acontecimentos viessem de súbito a se desviar das sequências causais, desafiando assim toda previsão e tomando-nos de surpresa. [10]

Claramente o autor demonstra que a noção de controle é tão necessária à possibilidade de ordem quanto esta à definição de pureza. Poderíamos substituir temporariamente pureza por essência, para demonstrar a importante associação à noção de Modernidade e, portanto, de realidade industrial moderna.

A mudança mais radical que ainda falta descrever antes de prosseguirmos é aquela que trata da própria possibilidade de conhecimento dentro da teoria moderna. Não teremos tempo para tratar da filosofia de Immanuel Kant aqui, mas devemos deixar claro que no cerne dessa questão estão as reformulações que não só ele mas outros filósofos discorreram sobre a relação entre sujeito e objeto. A despeito do que se possa descrever nas dimensões deste trabalho, devemos tomar como evidência aquilo tão bem descrito no último capítulo de A condição humanaa victa ativa e a era moderna – por Hannah Arendt sobre o papel exclusivo da construção no conhecimento:

Seja como for, a experiência fundamental que existe por trás da inversão de posições entre a contemplação e a ação foi precisamente que a sede humana de conhecimento só pôde ser mitigada depois que o homem depositou sua fé no engenho das próprias mãos. Não que o conhecimento e a verdade já não fossem importantes, mas só podiam ser atingidos através da “ação”, e não da contemplação. Foi um instrumento, o telescópio, obra da mão do homem, que finalmente forçou a natureza, ou, melhor, o universo a revelar seus segredos. As razões para que se confiasse no fazer e se desconfiasse do contemplar ou observar tornaram-se ainda mais fortes após o resultado das primeiras pesquisas ativas. Desde que o ser e a aparência se divorciaram, quando já não se esperava que a verdade se apresentasse, se revelasse e se mostrasse ao olho mental do observador, surgiu uma verdadeira necessidade de buscar a verdade atrás de aparências enganosas. Realmente, nada merecia menos fé para quem quisesse adquirir conhecimento e aproximar-se da verdade que a observação passiva ou a mera contemplação. Para que tivesse certeza, o homem tinha que verificar e, para conhecer, tinha que agir. A certeza do conhecimento só podia ser atingida mediante dupla condição: primeiro, que o conhecimento se referisse apenas àquilo que o próprio homem havia feito – de sorte que o ideal passava a ser o conhecimento matemático, no qual se lida apenas com entidades produzidas pela própria mente – e, segundo, que o conhecimento fosse de tal natureza que só pudesse ser verificado mediante ação adicional. [11]

O que Arendt explicita sobre uma das condições da Modernidade é a questão do conhecimento substancial estar limitado ao que o homem efetivamente produz, ou seja, o homem só pode compreender o que faz, portanto o que tem controle, já que a partir de Galileu a realidade se tornou tão opaca e desviante quanto a mentira. Ora, se anteriormente colocamos o problema da essência como cabalmente moderno e agora juntamos a ele a possibilidade do controle, e assim de conhecimento, só nos resta concluir em que medida a imprevisibilidade não encontra espaço no pensamento moderno.

Novamente, tratando da atividade humana de maneira mais geral, poderíamos indicar que um mundo onde os resultados não possam ser antecipados é um mundo, como apontou Bauman, onde todas as ações são suicidas. Trabalhar sem saber se as consequências se manterão coerentes às causas, de modo antevisto empiricamente como provaram os empiristas britânicos, é se perder no deserto de uma realidade em que a ação humana não tem significado algum. Significado para o Moderno é possibilidade de resultado, é efetivamente mudar o mundo (retornamos a Jones), como convocou Karl Marx de forma análoga ao “início de alguma mudança no mundo das coisas feitas pelo homem”.

Marx, que a partir da última tese sobre Feuerbach anuncia que “os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; agora é preciso transformá-lo”, deixa claro em toda sua obra, pela famosa inversão da posição do trabalho no pensamento tradicional, que “aquilo que distingue o homem do animal, sua diferentia specifica, não é a razão, mas sim o trabalho […]” [12].

O “Homem Econômico” e o mundo mecânico ^

O modelo industrial, marcado pela nítida divisão de trabalho, pela atenção aos tempos e movimentos, à produtividade e às vantagens da padronização tanto de componentes como de operações, visando justamente diminuir ao mínimo possível os riscos e custos da construção do produto industrial, nada mais é do que uma fiel expressão dos princípios modernos. Herbert Simon, ao longo do capítulo Economic Rationality: Adaptative Artifice em The Sciences of the Artificial, deixa claro algumas dessas questões ao definir o que é a atividade econômica:

Sendo a escassez um fato central da vida – terra, dinheiro, combustível, tempo, atenção e outras coisas são escassas – é tarefa da racionalidade gerenciar recursos escassos. [13]

Essa é a própria definição moderna de economia. Originada do grego oikos (casa, morada, abrigo do homem), economia, primeiramente, é atividade de gerência de recursos domésticos. Mais tarde a definição se expande e passa a ser entendida como administração de recursos escassos a desejos sempre crescentes, permanecendo, no entanto, fiel à providência da necessidade humana – a definição econômica carrega a noção de subsistência biológica. A despeito das diferenças entre macro e micro-economia, a definição supracitada cabe perfeitamente aos nossos propósitos e está em consonância com a narrativa do surgimento do “Homem Econômico” na nova realidade industrial segundo Lewis Mumford:

Neste mundo paleotécnico, a realidade era o dinheiro, os preços, o capital, as ações: mesmo o ambiente, como a maior parte da existência humana, era tratado como uma abstração. O ar e a luz do sol, por seu escasso valor de troca, não tinham realidade alguma. [14] 

A indústria não só tomará por princípio o modelo de gerência econômica consequente da proposição marxista do trabalho como fonte de subsistência, como sincronicamente, não podendo assimilar a imprevisibilidade, determinará qual é a eficiência necessária à existência desse modelo. O encadeamento de causas e consequências deverá ser, obviamente, demonstrável e reprodutível.

O mundo moderno nasce mecanicista, e a indústria tem a mesma marca de nascença. O design industrial não poderia, por sua vez, deixar de observar esses ritos, já que por definição ele deve atender às demandas e regras desse mundo. O que nos surpreende é que de certa maneira ainda encontremos dificuldade em conceber consistentemente o design que não fosse funcionalista em última análise. Funcionalista é a definição da existência de qualquer coisa como meio para um fim, ou seja, “isto serve para aquilo”, ou melhor, “isto é para aquilo”. No entanto, a crítica que muitos historiadores e sociólogos revelaram é que a dita “falácia funcionalista” não considera os processos históricos e acidentes de percursos que fazem com que uma coisa seja, na atualidade, o que é. A definição pragmática, por outro lado, de qualquer coisa pelo que ela faz só reitera que a possibilidade de controlar o fenômeno antevendo seus resultados é somente o que importa à mentalidade industrial. Admite-se então que mesmo a produção semi-industrial, ou manufaturada como nos primórdios da Revolução Industrial, se contida no contexto econômico-industrial, não pode escapar a essa lei que gerencia recursos escassos a uma demanda sempre crescente por meio de um sistema de reprodutibilidade sustentável dos artifícios da cidade/civilização. Assim, em qualquer produção de design que de alguma maneira não se encontre dentro dessa definição do mundo industrial encontraremos dificuldade em sustentar que seja design. A preocupação deste trabalho não é provar o contrário, mas no decorrer do texto o objetivo é demonstrar que o design, assim como outros tipos de manifestação humana pouco estudados, possui especificidades que escapam à cosmologia industrial moderna.

Entretanto o que é ser demonstrável, reprodutível e desmontável? Como explicar o encadeamento de causas e consequências? Enfim, o que é mecanicismo?

Pode-se dizer que a visão mecanicista do mundo é justamente aquela que acredita que se pode conhecer o todo e seu funcionamento a partir do conhecimento das partes e das suas relações; em última instância, que é possível prever o comportamento do todo observando-se a maneira como as partes se comportam. Essa ideia é central na Modernidade e podemos dizer que marca o procedimento filosófico, sobretudo em René Descartes.

O procedimento cartesiano de investigação prega a noção de que se pode reconstruir o novo edifício do conhecimento a partir da indivisibilidade do sujeito pautado, nitidamente, na crença de que todas as partes desse movimento funcionam de maneira prevista e ordenada pelo princípio que os guiou. Também está presente aí a formulação de sistema: um conjunto de elementos interligados de modo que a mudança de estado de um deles provoca reações nos demais, alterando o comportamento do todo. A ideia de que esse comportamento do todo pode ser previsto tendo-se conhecido a natureza do movimento das partes é o conceito de sistema mecanicista.

A própria noção de causa e efeito se pauta na possibilidade desse conhecimento e é em David Hume que estranhamos a evidência de que não percebemos verdadeiramente as causas, mas somente os eventos. Um mecanicista, no entanto, não negaria a existência da causa e acusaria na existência de um movimento estranho ou imprevisto um problema apenas de percepção. [15]

Portanto, ser desmontável, reprodutível e demonstrável quer dizer que podemos dissecar qualquer fenômeno da realidade em partes suficientemente pequenas para evidenciar a natureza atomizada do movimento, de modo que possamos demonstrar esse processo de tal maneira que sua reprodução se torne uma questão meramente técnica: daí a típica concepção da natureza como máquina no pensamento anterior ao século 20, e consequentemente do homem como máquina. O movimento de quebra da realidade em pedaços menores plenamente compreensíveis – de forma que o todo, antes um mistério, revela suas causas através do trabalho do intelecto dissecante – é o mesmo do remonte. Em suma, a realização do ideal de se produzir uma nova natureza é apenas questão de tempo. Assim que se apreende o que é o átomo, pode-se, a partir do entendimento do seu funcionamento, reproduzir indefinidamente qualquer coisa da mesma maneira como se pode desmontá-la. É o funcionamento das engrenagens: só existem dois sentidos em um mesmo movimento.

Isso é decisivo para o nosso entendimento do que é o pensamento moderno. O mecanicismo funda todos os procedimentos científicos e industriais e está no cerne da nossa discussão sobre previsão e controle. Seria possível defender um sistema em que os movimentos das partes não resultassem sempre o mesmo movimento do todo? [16]

É importante notar que essa cosmologia se espalha por todas as esferas da atividade humana, e não é por ignorância que os teóricos modernos fazem suas afirmações. Quando chegar o momento de apontarmos uma dimensão inexplorada da atividade projetual ficará mais fácil entender o peso dessa concepção para o entendimento do que o homem é capaz de fazer.

Teleologia ^

Toda análise que aceite que todas as coisas visam à realização de um fim próprio, que já está definido na sua própria constituição, isto é, que seja imanente ao ser, é teleológica. A definição de Aristóteles implica compreender que finalidade é justamente a realização da razão de ser de toda coisa que existe. Isso é o que permite que se definam os parâmetros de uma boa conduta, ou da corrupção do propósito natural de cada coisa. [17]

É a capacidade de perceber essa finalidade, no entanto, que está em pauta: o intelecto humano é capaz ou não de saber qual a finalidade última das coisas que existem? Pode o homem saber de antemão a razão de alguma coisa existir? A capacidade de visualizar no futuro o objetivo a ser alcançado é fundamental na teoria moderna industrial em função, como vimos, do pragmatismo de resultados e reprodutibilidade de processos, e não pode ser contestado sem que se comprometa toda a razão de projetar algo: “Toda projeção consiste numa antecipação do futuro levada a cabo por meio da imaginação.” [18]

No entanto, o homem pode, como vimos anteriormente, conhecer de fato a finalidade daquilo que produz, isto é, todo produto de design. Alfred Schutz não só revela o próprio sentido do verbo projetar ao lançar a seguinte sentença no capítulo Projects of Action, como simultaneamente corrobora a tese em Jones de que a atividade de design envolve necessariamente a visualização de um estado futuro, um estado de “ato”, como dirá o primeiro ao se referir à conclusão da ação.

Os meios de se alcançar esse conhecimento carecem de consenso. A finalidade do design, para Herbert Simon, é a definição de como resolver um determinado problema. A finalidade do objeto é definida antes do início dos procedimentos de configuração, no que comumente se chama briefing, e é a fidelidade a este que definirá, teleologicamente, um bom ou mau projeto. Simon, no seu enfrentamento com uma definição da ciência do mundo artificial, encontrou o mesmo problema que Schutz: que princípio estabelecer para agir de uma maneira e não de outra? Ou, colocado de outra forma, como encontrar a melhor solução dentro de um universo de soluções possíveis e incalculáveis? Simon dará a exata medida do limite desse sistema ao propor que o design só pode almejar performances satisfatórias, em vez de resultados ótimos, justamente pela impossibilidade de cálculo de todas as situações possíveis:

[…] a alguns anos atrás eu introduzi o termo “satisfatório” ao me referenciar a tais procedimentos. Agora, ninguém em sã consciência se dará por satisfeito se puder igualmente otimizar; ninguém buscará o bom se puder ter o melhor. Mas essa não é a maneira usual como se apresentam os problemas de design[19]

O procedimento de projeto que Simon determina é o de busca de soluções satisfatórias por meio de “métodos heurísticos”. Estes estão circunscritos a uma lógica do design que incluiria a busca de respostas candidatas à solução do problema, através de uma estratégia de associação entre informações sensoriais (“aferentes”) e informações motoras (“eferentes”), ambas fruto da experiência. Consequentemente, a pergunta direta e constante que se faz a tais candidatas é se estas satisfariam todos os critérios do briefing.

Isso é o mesmo que dizer que a maneira de responder à nossa pergunta sobre “como fazer” é estabelecendo uma lógica processual que esteja atenta a todo momento ao próprio processo, perguntando-se “o que devo fazer em seguida?”, tendo sempre em vista os critérios do briefing estabelecidos anteriormente. Desse modo, a resposta para um problema de desígnio já é incipiente ao problema, e todo procedimento é teleológico. Em Simon, o problema do design toma a forma de um método: é tentar descobrir empiricamente a melhor solução a um problema. É a intenção de transformar uma situação dada em uma situação desejada, por meio de um processo muito similar ao de tentativa e erro, que ofereceria a possibilidade de uma ciência do projeto.

Poder-se-ia, a partir de Simon, inferir que o problema do design, ou da melhor ação possível, é um problema de cálculo e lógica, em que diversas técnicas mentais de interpretação de padrões da realidade devem ser usadas. Nesse sentido, deveríamos nos ater à simples delimitação do “como fazer”.

Ora, segundo Aristóteles, as coisas da arte [20] se dão por designação, e a mentalidade – pragmática, como vimos – necessária à produção das coisas se caracteriza pela busca de um fim específico, que aqui chamamos eficiência. O fim último das coisas, aquilo mesmo que determina essa eficiência, difere e só pode ser definido em outra esfera – a questão do “por que fazer”:

[…] todo aquele que produz alguma coisa o faz com um fim em vista; e a coisa produzida não é um fim no sentido absoluto, mas apenas um fim dentro de uma relação particular, e o fim de uma operação particular. Só o que se pratica [21] é um fim irrestrito […] [22]

Portanto o fim não absoluto de que nos fala Aristóteles é o que caracteriza essa finalidade prevista exigida pelo procedimento produtivo, e que é definida, em sua particularidade, por outro fim chamado irrestrito que, como veremos mais a diante, concerne à política.

A eficiência exigida no projeto é uma finalidade não absoluta. E a definição do designer como solucionador de problemas, como Schutz chama atenção, exige a antecipação da mudança desejada no status quo, que depende, por sua vez, de uma finalidade anterior e superior que defina o próprio problema a ser solucionado.

A viabilidade dos projetos ^

O maior obstáculo que o presente trabalho pode enfrentar agora é responder à inquietação de que talvez toda necessidade de controle e previsão seja parte da condição humana e não tão somente da Modernidade.

Não há como negar que a atividade humana se pauta nesses princípios, no entanto é preciso entender que não é um problema de realidade. O controle e a previsão são a condição sobre as quais nós, modernos, pensamos a própria ação, e poderiam ser descritos por sua origem empírica: é a observação dos fenômenos que nos faz concluir que existe a possibilidade de realizar tal fenômeno novamente. Tendo isso sido compreendido não fica difícil entender que é justamente a crise desse procedimento, antes desempenhado pelos ritos religiosos, pelo sobrenatural, e até pela metafísica, que culmina na Modernidade.

Seria dispendioso tentar situar essas mudanças na história. Porém, autores como Arendt e Argan, ao tratar dessa passagem, com propriedade dão a exata medida dessas mudanças. O que nos serve por hora é que a Modernidade surge do abandono da tradição e é obrigada a se lançar à empreitada de conceber a viabilidade da existência humana sobre outro terreno: pela via da racionalidade (cartesiana) pura.

A herança iluminista do século 18 já é representativa nesse sentido, e todas as linhas positivas de pensamento já indicam a racionalidade e o método científico como pré-requisitos de um novo mundo livre das superstições e das mitologias infundadas. Ao que parece, não é a racionalidade que demanda um novo mundo; ela parece preencher o vácuo criado pela crise das bases do pensamento ocidental: a tradição, a religião e a autoridade (Arendt).

Portanto, o que está em questão aqui não é se a ação antes da Modernidade era cega e sem direção, o que pode ser desmentido, mas, sim, como a partir das revoluções – científica, industrial, inglesa, americana e francesa – o homem passou a ver o potencial das suas atividades e consequentemente sua capacidade de criar e intervir no mundo. O controle e a previsão exigidos pelo homem moderno tomam uma forma diferente dos seus antepassados; ele é regido pela racionalidade científico-mecanicista, que preenche o papel antes feito pelo metafísico-religioso. Logo, a viabilidade dos projetos humanos toma outras proporções, mensuráveis dessa vez, e assim, em potencial, comprovadamente superiores em termos de eficiência aos séculos anteriores.

No entanto, não podemos dizer ser a eficiência o que define as motivações (a não ser se se tomar a própria produtividade como fim, questão apontada por Arendt em alguns momentos), e o problema visível em Simon, assim como no comentário de Victor Margolin sobre o assunto – em The Politics of the Artificial – permanece irresoluto: como estabelecer princípios normativos para a atividade humana de construção (veja o leitor o risco no uso desse substantivo) do artificial sem recorrer necessariamente a um positivismo per se? Essa dúvida nos acompanhará ao longo deste trabalho, tendo em vista que nossa maior preocupação é tornar viável teoricamente a “mudança no mundo das coisas feitas pelo homem”, e não desvendar os mistérios da existência. A questão pode ser reformulada: por que fazer determinada coisa, se podemos fazer qualquer coisa? Antes que inadvertidamente postulemos os limites técnicos ou físicos como impedimentos, cabe dizer que estes são apenas os elementos constituintes da própria condição do fazer, sem a qual não é possível sequer a noção de transformação efetiva do mundo, posto que o limite é antes de tudo princípio da compreensão. [23]

Poderíamos imaginar que a descrição citada trata de um problema que concerne ao mundo natural, pelo fato de parecer que não se considera que o mundo artificialmente construído possa ser controlado, de acordo com a fórmula moderna que diz que o homem só pode conhecer aquilo que produz. Na verdade, isentos das discussões sobre simulacrum, mundo natural e realidade virtual, cabe dizer que não há problema aqui em considerar o mundo artificial e a natureza da mesma maneira, já que o grande problema do consenso sobre a realidade – se é que existe – não é mais se ela é produzida ou não por nós, mas o que cabe considerar como realidade a cada análise, já que, definitivamente, realidade é qualquer coisa que chamemos assim, como demonstrou Margolin:

Para a “primeira modernidade” […] realidade era um termo incontestável. Era um terreno seguro para a atribuição de significado a objetos, imagens e atos. Hoje, esse já não é mais o caso, e qualquer menção a “realidade” deve ser condicionada, da mesma maneira que o termo “significado”; logo nós não sabemos ao certo como ou onde podemos traçar os limites do real e do autêntico como base para o significado. [24]

Assim como a realidade deixou de ser um dado em questão, mas passou a ser definida pontualmente a cada experiência, também os valores que regem as motivações dos empreendimentos e a noção da possibilidade de mudança e intervenção na realidade se transformaram em um obstáculo a uma formulação da viabilidade da atividade humana.

Em suma, seja a Antiguidade, seja o mundo Moderno, ambos acharam um meio de tornar teoricamente a viabilidade dos projetos humanos possível. Qual será nossa resposta a esse problema? Certamente não será afirmando de forma absoluta qualquer valor que seja, mas será através da constante tentativa de fazê-lo sem jamais, por sinceridade, conseguir. Aqui descortina-se levemente a situação do absurdo: talvez não nos seja mais possível definir um mundo seguro em teoria e em prática, já que chegamos ao impasse de discutir a própria linguagem, impossibilitando a própria discussão (Arendt). Mas vida e atividade humanas sempre foram possíveis; o eterno problema é entender como.

Forma pro forma ^

O design industrial moderno é necessariamente aquele que atende às premissas modernas de substancialidade, essencialidade, objetividade – real separação entre sujeito e objeto – e racionalidade instrumental; essa é, portanto, a forma pela qual os projetos humanos, a partir da grande Revolução Moderna, ganham existência. É a maneira que os homens do novo mundo industrial e científico inventaram para tornar seus projetos realidade, e nesse sentido o design moderno respeita a própria concepção de realidade do Moderno: demonstrável, reprodutível, mecanicista.

Aqui, tudo o que vale para o Moderno, vale para o design moderno. Assim, mesmo que tracemos as diferenças entre os primeiros cursos de artes aplicadas à indústria nos Estados Unidos e no Reino Unido e a trajetória do Arts and Crafts e das vanguardas artísticas europeias até a abertura da Bauhaus na Alemanha, perceberemos que compartilham dos mesmos princípios de Modernidade, seja tentando encontrar na realidade econômica-industrial a motivação e o limite para a produção dos americanos, seja buscando na organicidade e livre expressão formal da art nouveau como fiel retrato da humanidade – em termos de essência – que faltava para a redimição dos produtos industriais, seja na clara concepção da necessidade de uma nova arte total própria da era industrial, ou mesmo na percepção de que os novos meios de produção finalmente realizariam a possibilidade de produzir objetos de altíssima qualidade a preços acessíveis à massa da população.

A questão da essência, no mundo moderno, se diferencia basicamente da tradição ocidental até então pelo fato dela ser objetiva e cognicível, alcançável através do trabalho instrumentalizado e da observação empírica. Portanto, do design moderno, não se pode afastar a ideia de que é capaz de afirmar sua essência através do seu exercício, já que não há mais uma tradição que aponte e indique quais são os significados que devemos perseguir. O design moderno, em função do que o Moderno nos diz, não tem valores sustentados de antemão e precisa que sua atividade se justifique na medida em que se torna objeto real, passível então de alguma análise ou justificação. É curiosa a situação que a Modernidade coloca a sua atividade ao tentar transformá-la em seu próprio motor. Isso não é tão distante da tentativa de revelar a substância da atividade per se, e o design procurará logicamente, como vimos, definir-se e validar-se por meio dos seus efeitos.

***

Devemos definir o que dizemos com a palavra forma; quando em Jones vimos que o que define o design são os seus efeitos, uma certa dúvida quanto a estes permaneceu. Tendo discutido o termo design, traçamos a enorme diferença entre se conceber a atividade de projeto teleologicamente ou criticamente como estamos fazendo: por um lado, devemos todas as justificativas de nossas ações aos objetos e processos e, por outro, enxergamos valor na própria atividade.

Forma [25] é toda configuração estável de elementos que existe a partir de uma intervenção externa; externamente porque a noção de finalidade, necessária ao conceito de função, só pode existir no intelecto que, em sua estrutura cognicível, perceba o fenômeno em termos de causa e consequência. Com essa definição podemos temporariamente afirmar que o design sempre cria e altera forma.

Na constante busca por uma essência da atividade humana, a Modernidade não poderia fundamentar, logicamente, seus princípios na tradição clássica. É a própria ruptura com as certezas herdadas que marca o nascimento da Modernidade, tão bem expressa na dúvida hiperbólica de Descartes. A partir de então, o pensamento ocidental precisou de outros princípios para nortear tanto as atividades humanas quanto as ocupações do espírito. Nasce então com o próprio Descartes a noção de sub jectum, aquilo que jaz abaixo como fundamento, no movimento do cogito ergo sum, penso logo existo.

Os designers da modernidade pressentem a mesma dificuldade: sobre o que pautar os fundamentos da atividade de projetar? Certamente não será sobre os valores metafísicos e religiosos da era pré-moderna, mas sobre algo que possa resistir a uma dúvida tal como a de Descartes, dessa vez adaptada à pergunta “por que fazer isso e não outra coisa qualquer?” Como validar a experiência de projeto? Esse é um problema de validação do design, e o que impede uma resposta imediata ao valor do design é que ainda não sabemos como defini-lo interna e externamente; a fórmula forma segue função, na verdade, é apenas a validação interna do processo de desenvolvimento da forma.

A palavra “função” tem procedência conhecida. É em Aristóteles que ela ganha significado na definição teleológica do Ser. É patente no filósofo grego a fundamentação naturalística das coisas da existência: todo seu modelo de pensamento advém da observação empírica da realidade natural, isto é, no nosso caso, anterior a qualquer projeto humano – é necessariamente uma filosofia biológica. A noção de função surge daí: de que as coisas existem para uma finalidade, já imanente na forma, tal como um órgão ou membro, ou, mais genericamente, parte de um organismo. Tal definição – esta se liga de modo direto à lógica pragmática de Peirce, exposta no artigo “How to make our ideas clear” – é extremamente apropriada a nossa explanação nesse momento, visto que essa definição é baseada no princípio da economia: ninguém teria um órgão sem função ou membro que só produzisse custos. Função já carrega essa condição de priorização e cálculo de custos e benefícios, já que a Natureza, como Aristóteles mesmo nos diz, “sempre procura o caminho mais fácil”.

Dessa maneira fica entendido que dizer que a forma segue a função é nada mais do que reiterar de maneira óbvia o que foi escrito há cerca de dois mil e trezentos anos, sem que no entanto se responda ao problema da justificativa de projeto. É dizer de certa maneira como algo deve ser feito, mas não por quê. O problema do por que revela que a questão da validação externa do projeto ainda não foi vislumbrada.

Internamente, quando se tem a perspectiva de produzir sempre considerando a função, o problema do valor parece resolvido. A justificativa interna, e a única capaz de estabelecer um moto eterno baseado em princípios estáveis, é a forma pela forma. É possível, então, entender por que tanto tempo e energia se pode investir em estudos e investigações puramente formais, que tenham como enunciado imediato a otimização do processo de compreensão e comunicação. Na verdade, esse procedimento esconde a desesperada tentativa de resolver o problema da validação externa: sem poder justificar por meios extraformais sua produção, o design moderno volta-se sobre si mesmo. [26]


A moral do técnico ^

Nossa concepção sobre a unidade fundamental de toda criação no tocante ao mundo em si opunha-se diametralmente à ideia de l'art pour l'art e à filosofia ainda mais perigosa da qual se originava, isto é, a do negócio como uma finalidade em si.
— Walter Gropius

A ética racional ^

O que certamente Walter Gropius e outros projetistas não puderam aceitar é a ausência de responsabilidade advinda do modelo que relega o designer ao papel de simples técnico solucionador de problemas. William Morris é ainda discutido e está na origem de muitos dos argumentos de relevância do projetista, justamente pela sua tentativa de encontrar a mesma possiblidade de ação que almejamos. O que raramente percebemos é que para isso Morris acabou por se tornar produtor, fabricante, editor e escritor, que são comumente a origem dos enunciados externos e anteriores ao projeto. O que animou seu trabalho de vida foi, no entanto, o esforço para encontrar no projeto aplicado à indústria uma força capaz de alterar o resultado dos vetores, sem que no entanto propusesse novos – uma revolução ou anarquia.

O mesmo compromisso poderia ser descrito em outros termos em Gropius. Segundo Giulio Carlo Argan, a preocupação do arquiteto é, por meio do projeto e, mais especificamente, da metodologia do projeto (culminando no ensino dessa metodologia), remediar os males de uma produção industrial inconsequente. Gropius é lúcido o suficiente para não ceder a nenhuma ideologia milagrosa e sua postura racionalista busca uma maneira de transitar dentro do novo sistema indutrial reconhecendo os limites tanto do projeto quanto do contexto produtivo:

[…] o firme apelo de Gropius por uma arte inteiramente técnica, livre de qualquer ideologismo, ligada às férreas leis econômicas da produção, permite largamente supor: uma vez que a sociedade está doente da arte, é esse orgão sobre o qual convém atuar para reduzir-lhe o desenvolvimento anormal e retificar-lhe o funcionamento irregular. [1]

É esse procedimento de contenção dos excessos e destemperos do sistema industrial moderno que cabia aos designers, segundo o arquiteto. E esse é de tal maneira fundamentado em um racionalismo independente de ideologia que sua educação poderia, em teoria, extrapolar os regimes dos sistemas específicos e ganhar autonomia. O projeto industrial moderno não pode exceder os limites da sua procedência, mas deve entender o funcionamento desse sistema de modo a trabalhar em prol de resoluções que não negligenciem nenhuma das consequências à vida humana – aliás, como Gropius sempre deixou bem claro, as consequências psicológicas. É nesse movimento que se funda tanto a ética racionalista do projeto quanto a possibilidade do seu ensino independente de ideologias: é possível fundar uma atuação responsável, transmiti-lá através de regime educacional e formar uma classe de técnicos conscientes das questões centrais do sistema industrial.

Essa ética provinda do racionalismo prevê logicamente que não só é possível conhecer em profundidade as condições da produção, mas que também é possível encontrar essa ordem de contenção por outra via que não seja a ideológica. Fica claro, com o nosso distanciamento histórico, que no contexto de pós-Guerra isso parece plenamente plausível. O fundador da Bauhaus acredita ser possível criar técnicos instrumentalizados com os aparatos dessa Razão capaz de, pela força de sua natural imposição, ser ética de fato, sem que para isso se precise de uma ideologia:

O tecnicismo de Gropius, a rigor, pode ser interpretado como uma não política, no sentido em que visa a resolver ou até evitar, na lúcida funcionalidade social, todo contraste ideológico […] Mas esse precoce anúncio de uma “revolução dos técnicos”, essa firme convocação à tarefa que cabe aos intelectuais na transformação da velha sociedade hierárquica numa sociedade funcional, não podia deixar de assumir um claro significado político; e de fato o assumiu aos olhos da burguesia alemã, que antecipou ao “socialista” Gropius a condenação nazista. [2]

É importante entender o significado da política aqui. Para Gropius, assim como para muitos nesse contexto, política é necessariamente essa ideologia, é o enunciado externo a toda atividade, pressuposto em uma ideia de cunho sociológico, que deve, para ter validade, ser aplicada a todos os negócios humanos. O que os designers, artistas e arquitetos quiseram era justamente uma independência desse tipo de política: procuraram da mesma maneira que nós ainda hoje procuramos uma validade da nossa produção por meio dela mesma. O racionalismo é a resposta bauhasiana e um parâmetro suficientemente independente para nortear o projeto em qualquer contexto em que ele se desenvolva.

Porém, como Gropius mesmo percebeu, um racionalismo não seria suficiente. A despeito do psicologismo que o próprio Gropius afirma ser necessário a todo o projeto, em um texto chamado O arquiteto é servo ou líder?, Gropius já percebe a dificuldade que tratamos neste trabalho:

Com isto não quero dizer que devamos aceitar sempre as opiniões do cliente. Devemos, pelo contrário, educá-lo de tal modo que ele nos confie a configuração de suas necessidades. […] Devemos fazer o possível para convencê-lo, sem presunção, de nossas idéias, pois somos nós enfim que devemos firmar, com base em nossa competência, o diagnóstico daquilo que o dono da construção necessita de fato. […] Se desleixarmos um desses campos ou temermos a responsabilidade na chefia, estaremos nos reduzindo nós mesmos ao papel de meros técnicos. [3]

Essa é a consequência natural da consciência da importância do projeto: a reivindicação da responsabilidade e, portanto, do comando. No entanto, como veremos, a situação é mais complicada do que nossa moral pode acusar, e nada impediria agora de afirmarmos que o que Gropius sugere é que os designers atuem como co-clientes, co-responsáveis pelos briefings externos ao projeto. O arquiteto já oferece a resposta à pergunta formulada em seu título:

[…] em lugar de “ou” coloque-se “e”. Servir e liderar dependem um do outro. O bom arquiteto deve servir ao interesse do público e mostrar ao mesmo tempo verdadeira liderança que, edificada sobre uma convicção verdadeira, dá a direção tanto para o dono da construção quanto para a equipe de trabalho a que foi confiada a execução da obra. [4]

Liderar e servir, no entanto, constituem dois momentos diferentes de uma mesma relação, e a pergunta é se o projetista sempre deve assumir o comando, pois se é isso que lhe cabe, haverá algum momento em que a responsabilidade não será sua?

O juramento de Frascara ^

A busca do significado e da responsabilidade do projetista de fato ganha outras proporções com Victor Margolin e alguns outros designers e arquitetos contemporâneos. Talvez mais descrentes agora do poder daquela imposição da Razão superior a todas as instâncias políticas, procuramos outra maneira de fazer sentir certas decisões na sociedade.

O contexto certamente não é mais o mesmo de Gropius ou Morris: a produção mecanizada não está mais no centro da discussão; a sustentabilidade e os grandes modelos econômicos de desenvolvimento são o assunto de um mundo agora globalmente regulamentado pelas leis da circulação do capital. Margolin não irá, como fez John Ruskin, discutir o átomo do processo produtivo – o operário – ao tocar no assunto do valor do design; agora voltamos nossos olhos para os grandes movimentos.

Um texto de Margolin, “O design e a situação mundial”, parte justamente da contraposição de modelos de gerência dos recursos econômicos e produtivos mundial. Duas forças produzem esse “mundo em tumulto”, segundo o autor: um modelo de expansão mundial e um modelo de equilíbrio. A despeito das definições que encontramos no texto, o ponto central é que o design é chamado a ocupar o papel conciliatório desses modelos em função de uma sustentabilidade de crescimento moderado e responsável.

Apesar da distância que as décadas colocaram entre Margolin e os designers do começo do século, é possível perceber um mesmo princípio de comportamento: ambos acreditam que é possível trabalhar dentro do status quo de maneira conciliadora e reparadora. O que eles divergem, provavelmente, é sobre a definição técnica da atividade: Gropius aceitava-a sem problemas, já Margolin, assim como nós, não a achará suficiente.

Comumente pode-se perceber que, geralmente ao fim de seus textos, Margolin, de certa maneira, muda de tom: o que antes parecia ser uma análise do status quo com intuito de tomar consciência dos principais problemas envolvidos é substituído por um sentimento de urgência:

Existe um vácuo no que diz respeito à conciliação desses dois modelos que pode ser preenchido através de uma reformulação da prática e do ensino do design. O design é uma atividade que gera planos, projetos e produtos. É uma atividade que produz resultados tangíveis, os quais podem funcionar como demonstrações ou como discussões das maneiras em que poderíamos viver. O design está reinventando constantemente os seus objetos de estudo, sua área de abrangência: não se limita, portanto, a categorias antiquadas de produtos. O mundo espera novidades da parte dos designers. Esta é a natureza do design[5]

Não há designer que não concorde com tal levante, porém temos de proceder ceticamente em relação a tal chamado. O projeto realmente é capaz de estabelecer seus próprios enunciados políticos? Em que medida é no projeto que os designers podem estabelecer esse desígnio? É possível que não possamos deixar de nos colocar politicamente como profissionais? Isso está condicionado pela publicidade das formas que produzimos? Isso tão somente pode ser caracterizado como discurso político?

O autor argentino Jorge Frascara fará dessa questão o cerne do seu livro Diseño gráfico para la gente, em uma defensa direta e explícita das responsabilidades do designer. Apesar de seu esforço em explicitar a dignidade do profissional, é sintomático o fato de que não é possível escapar da ideia de que esse compromisso é anterior e independente do projeto, e mesmo que aqui tivéssemos imaginado o problema como típico do design de produto, devemos atentar para implicações das suas afirmações à natureza do design:

Assim, a comunicação visual deve ser vista como um meio, como a criação de um ponto de interação entre as situações existentes, as situações desejadas e as pessoas afetadas. Falamos todavia de comunicação visual, mas essencialmente de comunicação, e de comunicação que chega a existir com um propósito claramente articulado. [6]

Quem define claramente esse propósito? O que é um propósito articulado? Certamente o designer pode participar dessas definições, como nos disse Gropius, mas isso certamente não é algo que se parece com o “meio” ao qual Frascara se refere. O que se diz, em suma, é o que o design não só pode ser político, como deve assumir uma posição. E até mais radicalmente poderíamos dizer que é impossível se isentar de tal compromisso. Mas apesar da moralidade dos homens projetistas garantir, enquanto seu exercício for dessa maneira consciente, o significado dessa produção, ela não poderá negar que o design seja um meio, um instrumento extremamente eficiente – e abrangente – por sinal, aos propósitos da política, sejam eles boas ações sociais ou regimes totalitários. Antes parece que, tendo em vista as responsabilidades que Frascara descreve – profissional, ética, social e cultural –, seria preciso instituir nos programas de ensino de design do mundo todo algo análogo ao juramento de Hipócrates:

Eu juro, por Pugin, arquiteto, por Ruskin, Morris e Gropius, e tomo por testemunhas todos os projetistas e todos os homens de bem, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: estimar, tanto quanto a meus pais, a Escola que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com Ela partilhar meus bens; ter seus discípulos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes essa arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes.

Projetarei para o bem da gente, em sua sua vida diária, segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. Nunca me isentarei por ignorância ou por má-fé de avaliar e identificar os contextos dos problemas as quais estou empenhado em resolver, disposto a ajudar na definição dos paradigmas e problemas que concernem a todos. Não projetarei segundo interesses particulares que impliquem o sacrifício do bem público e me negarei a resolver um problema que não consiga provar sua relevância.

Conservarei imaculada minha vida e minha arte.

Não revolucionarei o contexto produtivo, mesmo sendo um caso de necessidade; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam.

Em todo projeto, aí entrarei para bem prover a possibilidade de comunicação atrativa, convicente e relevante à gente, fiel ao desenvolvimento da linguagem e da experiência em um constante ciclo de realimentação positiva, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução, sobretudo do lucro econômico ganho à custa da ignorância da massa da população.

Assim como o potencial de minhas ações extrapola os limites do briefing, terei como critério de avaliação não só a satisfação daquele que me contratou, mas também o impacto de meus atos em todas as dimensões da vida da gente: motivação primeira e última da minha atuação.

Não negligenciarei o poder de mediação das coisas, sempre utilizando-o para o bem da gente, tampouco deixarei de reconhecer o público como sujeito intérprete ativo do processo de comunicação. Atendendo às demandas sociais de maneira inclusiva, promoverei a integração, a justiça e a liberdade.

Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.

Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça.

O discurso pela forma ^

Se falharmos na definição política do design, o problema estará resolvido em função da política, como nas palavras de Argan:

O projeto não é mais do que a predisposição dos meios operacionais para pôr em prática os progressos imaginados. A imaginação ética e politicamente intencionada é a ideologia, e não pode haver projeto sem ideologia. [7]

Aqui a política vêm antes do design, que é meio para os fins imaginados e previsionados. Sem conseguir alterar a situação em prol de uma política do design não poderíamos, a princípio, por causa de sua natureza técnica, condenar aqueles que vendem seu trabalho por ideologias totalitárias, antiéticas, ou que simplesmente atendem aos propósitos do mercado competitivo, sem qualquer preocupação com as consequências não previsionadas de suas atividades. Esse é antes um problema dos homens, não do projeto, e se, teoricamente, pudermos um dia produzir máquinas capazes de realizar as mesmas operações descritas por Simon, deveremos nos indagar a mesma coisa: quem afinal é o responsável pelas consequências funestas que um projeto pode ter?

O projeto em função da política é uma arma poderosa; não devemos negar ou esquecer que assim que determinamos uma forma para alcançar algum efeito político, ela será tão eficiente quanto a produção formal pragmaticamente exige, e não haverá problema em discutir seu peso político como ferramenta. Não queremos discutir essa eficiência ou a necessidade de todo design atender a uma premissa explicitamente política, pois, como temos visto, não só os políticos mas também os designers ouviram esse chamado. Devemos, então, atentar para dois fatores importantes aos nossos esforços futuros: a questão da autoria e do discurso da forma.

Para entender melhor o problema do discurso e da forma, vale a pena voltar a atenção para uma discussão própria da arte moderna: a do sujeito da obra de arte. Dispensando as origens históricas desse fenômeno, vejamos brevemente de que maneira na arte moderna o problema foi colocado como questão formal e individual.

Trabalhando em função de uma independência das formas que produzem, tendo em vista que a personalidade, ou melhor, interioriedade, do artista não deveria ser o motivo da obra, e nem mesmo teria o direito de ser descoberta, o formalismo advogava em defesa da contenção do ego no comprometimento com valores da pluralidade. Mário de Andrade, ao preparar seu curso de Filosofia e História da Arte na Universidade do Distrito Federal, encontrou nas origens da arte, nas suas formas mais primitivas e mais complexas, uma relação sintética entre sentimento – relativo “às exigências subjetivas derivadas de estados afetivo-nocionais” – e expressão – “esforço para exprimir objetivamente aqueles estados […] com o recurso da técnica […]” [8]:

Esse equilíbrio teria se perdido na época moderna, quando ocorreu a desvalorização do polo expressivo da arte em benefício do sentimental. Isso se deveu a que a modernidade incentivou a inflação da figura do indivíduo-artista, provocando, por esse motivo, o desenvolvimento de uma mentalidade individualista que, por sua vez, conduziu a uma compreensão formalista da técnica artística. [9]

Essa nova mentalidade, e a sua contrapartida compreensão, marcavam, segundo Andrade, o panorama da arte moderna de tal forma que o artista, condenado às satisfações do próprio ego, permaneceria isolado e incapacitado de uma ação política tal como a temos discutido, a não ser que se comprometesse a se relacionar de maneira diferente com sua obra para atender questões que extrapolassem esse próprio ego, tal como nas palavras de Gropius segundo Argan: “A solução não depende de melhoramentos nas condições externas de vida, mas sim de uma atitude diferente do indivíduo em relação à sua própria obra” [10].

Mário de Andrade não só pressente isso como discute essa problemática nos seus últimos anos no Rio de Janeiro, propondo, ainda que de maneira apreensiva, uma solução materialista, isto é, relativa a relação ocorrida entre o homem e a matéria no processo de criação da forma:

[…] Mário de Andrade deu-se conta de que a situação de isolamento do artista contemporâneo tinha a ver com o desvio individualista e formalista experimentado pela arte desde o Renascimento. Como uma reação a esse quadro, Mário de Andrade propôs que o artista contemporâneo assumisse uma atitude estética, pela qual passaria a subordinar a sua inventiva às exigências materiais envolvidas no fazer arte. A solução da conversão da arte à sua base artesanal inspirava-se em diversas tendências do pensamento e da arte da época, desde o espiritualismo católico até o funcionalismo em arquitetura. […] A superação da concepção da arte fundada na figura superdimensionada do artista moderno seria alcançada, ao imprimir-se uma nova direção à técnica artística. Ao invés de apresentar-se como um veículo para a expressão de uma personalidade, a técnica passaria a condicionar e a limitar o gesto do artista. Havia nessa proposta o sentido de uma destruição do eu. [11]

A solução proposta por Andrade é justamente de contenção do eu através de um envolvimento completamente consciente do artista com sua obra de modo a produzir a melhor forma que o seu material de trabalho permitisse. É curiosa a sintonia com as formulações de Gropius, que também preocupado com uma saída em direção à coletividade vê a solução prática, não na fruição estética ou no engajamento político da arte, mas num materialismo do tipo de Mário de Andrade corporificado na estandartização:

Não se renuncia ao standard, que não é uma forma característica do racionalismo formal, mas sim o resultado constante da experiência artística, o ponto de chegada de uma tekné. […] Somente a partir do momento em que a sociedade perdeu sua unidade e a arte se colocou como expressão individual (admitindo assim, a autoridade diretiva do indivíduo sobre a massa) foi que desapareceu a consciência do valor do standard: o qual é produto de uma seleção, triunfo daquilo que é “vital e impessoal sobre aquilo que é pessoal e acidental”. […] Disso decorre que o standard já não é um objetivo que a sociedade se propõe e em cuja obtenção ela aspira a eliminar certas contradições a fim de obter um grau maior de integridade, mas sim a expressão de um fundamento unitário, de um ethos coletivo […]. [12]

De certa forma esse é o mesmo mote dos movimentos de vanguarda construtivistas europeus que, por questões de modernidade, visam claramente à concepção ética da produção como uma questão de abafamento da personalidade em prol de questões (universalmente) mais relevantes, muitas vezes claramente enunciadas no axioma do “respeito aos materiais”.

Já que não nos é permitido ganhar mais profundidade nesse aspecto vejamos apenas o caso de Piet Mondrian.

O artista holandês é um dos baluartes de um racionalismo anti-individualista como tema da produção artística. Suas conhecidas composições anulam os índices de uma presença corpórea humana. O autor desaparece na massa – e a experiência da massa só se torna possível no século 20 – em que o indivíduo se subordina aos interesses de uma coletividade que dá sentido mesmo a sua produção:

O artista, para Mondrian, não tem o direito de influenciar o próximo emotiva e sentimentalmente se chega a descobrir uma verdade, tem o dever de demonstrar como chegou a isso; se pode demonstrá-lo, tem o dever de levar essa verdade ao conhecimento de todos, de fazer com que possa ser utilizada na vida civil da comunidade. […] Cônscio da responsabilidade cultural do artista, faz da pintura um projeto de vida social; o que imagina não é uma sociedade utópica sem contradições, mas uma sociedade capaz de resolver suas contradições dia a dia, com o raciocínio e sem o recurso à violência. [13]

Nesta última frase encontramos a mesma capacidade da razão descrita por Gropius: é possível efetivar o projeto social racionalmente sem o apelo a ideologias revolucionárias. Mondrian está firmemente comprometido com a questão da civilidade, e a validade de sua pintura é formal; é a forma no sentido kantiano, aquilo que não corresponde exatamente à percepção sensorial, mas ao resultado cognitivo do fenômeno.

O autor está morto? Foi sacrificado para expiar o pecado original da civilidade moderna? O que se deve suspeitar é que, por mais que o formalismo racionalista postulasse a independência da forma e afirmasse paradoxamente a abstração intelectual da forma, seus autores não puderam deixar de ser os próprios comentaristas de suas ideias. Afinal Mondrian consegue efetivamente desaparecer por trás de suas composições bidimensonais? O público, essa mesma massa pela qual valia a pena o sacrifício do sujeito, não reivindicou sua presença e o chamou pelo nome ao se deparar com a forma? “Lá, um Mondrian!”

Não é tanto a questão de saber se haveria alguém que pudesse reconhecer ou não os autores das obras, ou mesmo o tempo que se levaria para tomar conhecimento desse fato, mas investigar se a forma é realmente capaz de revelar algum agente. Será que a forma indica sempre presença, interferência ou desígnio humano?

Não poderemos provar essa suposição, nem a sua contrária, mas o problema que surge dessa hipótese é que se a forma veicula qualquer discurso, se, mais ainda, ela puder, de maneira mais complexa, revelar um quem ainda sem nome, ela não poderá deixar de ser política, e o artista, por sua vez, não poderá se abster de tomar uma posição ou fazer um comentário, qualquer que seja, determinado por um contexto também qualquer. O técnico é obrigado a dizer, e a responsabilidade, que antes era discutida pelas motivações externas e anteriores, agora só pode ser discutida na presença da forma.

Depois que esta assume o compromisso político já não importa mais qual sua origem; ela passa, por sua existência, a compor algo independente dos seus autores. Isto é o que parece estranho: aquilo que vela o agente – essencial para a caracterização do ato político – é a mesma coisa que permite a autonomia da decisão formal. Isso pode ser percebido quando as formas, permanecendo as mesmas, são “lidas” diferentemente em tempos e por pessoas diferentes:

Quando os racionalistas da Bauhaus chegaram à simplicidade das formas motivados pelo interesse de eliminar a ornamentação tradicional de todo objeto de desenho, seus trabalhos tiveram uma força imensa. Quando se busca a simplicidade a todo custo por parecer moderna, quando ela se transforma num estilo, os produtos perdem poder. [14]

Parece existir alguma coisa independente da conformação pura; algo que parece ser transportado por esta, mas que não se limita a ela apesar de depender dela para existir – não existiria um discurso pela forma anterior à forma[15] Devemos creditar esse fenômeno à relação que essas conformações estabelecem com seus intérpretes, e arriscar dizer que a forma, procedente da ideologia, pelo fato da sua existência depender não só dos produtores mas também dos “leitores”, pode ser uma ação tão independente quanto as palavras de um autor morto. [16]

A “cultura de coisas”, de que nos fala Frascara, é própria da atividade humana, que não se preocupa tal como se poderia pensar industrialmente, em atender problemas da ordem da necessidade, mas que também tenta significar o mundo. Nós podemos tudo, e isso, que parece conferir liberdade total à nossa produção, antes nos coloca um problema sério que é o do valor das coisas. Para que haja valor, no entanto, será preciso que haja discurso:

Todos os objetos que nos rodeiam formam uma linguagem para além da linguagem, são uma extensão de nós mesmos, uma visualização do invisível, um autorretrato, uma maneira de nos apresentarmos aos demais e uma dimensão essecial da humanidade. Nenhum animal põe tanta energia no ato de se cercar de objetos com o propósito de comunicar. [17] [18]

Guardemos esta possibilidade: que o design, a partir do propósito ideológico, possa ganhar uma autonomia na qual as decisões formais se tornem decisões políticas, e em que as consequências dessa capacidade performática [19] não mais correspondam às expectativas de previsão e controle. Entramos no campo político, onde as coisas são somente o que parecem ser.

Entretanto o limite dessa ideia, a de um discurso per-formático, é a própria definição de política.


O problema da ação ^

Por outro lado, a vida sem discurso e sem ação – único modo de vida em que há sincera renúncia de toda vaidade e aparência na acepção bíblica da palavra – está literalmente morta para o mundo; deixa de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre os homens.
— Hannah Arendt

Práxis e poiésis ^

O fato surpreendente, porém bastante evidente, é que, independente das crenças e premissas que tenhamos estabelecido, nós podemos (fazer) tudo. Se entre todas as opções dadas a um relativo problema, podemos literalmente tomar qualquer decisão, como decidir qual será a mais apropriada ou, em outras palavras, a que devemos tomar? Certamente não podemos imaginar que exista uma resposta de antemão, tampouco um princípio ou conjunto de princípios que nos assegure uma resposta, como o da economia de custos em função da maior rentabilidade ou ganho possível – já que a própria noção de ganho exigiria alguma delimitação de relevância –, ou os princípios normativos de um pensamento iluminado capaz de transcender todas as instâncias. Bem ou mal, o problema é mais radical: tem a ver com a própria delimitação do que deve ser um problema. Isso, na verdade, é a própria definição de uma condição de existência.

Portanto, o que vimos nos discursos de Gropius, Margolin, Andrade e Frascara é justamente essa dificuldade em fundamentar a razão de ser da realização do projeto, já que a própria noção de êxito depende dessa “imaginação ética e politicamente intencionada” de que nos fala Argan, isto é, a própria validação externa da atividade.

Vimos porém que também o projeto tem sua própria validade interna, determinada pelo pragmatismo que define a noção de eficiência – e, portanto, de validade pragmática –, segundo os critérios da previsão e do controle do processo de conformação. Nesse sentido, um ato bem-sucedido não é simplesmente um produto da sorte: envolve cálculos e conjecturas em processos complexos envolvendo dados sobre a realidade vigente – realidade percebida –, experiências passadas, observação de casos semelhantes, e uma série de outros inumeráveis fatores externos. O trabalho da mente humana, segundo Richard Buckminster Fuller, é justamente a busca por uma eficiência de procedimento tendo em vista o reconhecimento dos padrões existentes – através de analogias, metáforas, estratégias sinergéticas etc. – e dos dados desprendíveis da realidade. A única ressalva que deve ser feita – e, no fundo, a real motivação desta passagem – é que não há garantias nesse processo; nenhuma experiência ou ação anterior pode oferecer um procedimento absolutamente seguro para se alcançar o sucesso. O reconhecimento de quais são as variáveis mais decisivas, e o modo como sua interação pode funcionar em padrões relativamente estáveis em função de suas tendências comportamentais, exigiria aqui uma Teoria do Sistema, investigação além dos nossos propósitos.

***

Em Aristóteles encontramos, conclusivamente, a formalização da distância entre estes dois tipos de validação: dentro da possibilidade de conhecimento temos as disciplinas teóricas – filosofia, física e matemática –, e as práticaspráxis (ação) e poiésis (produção das coisas). Dentro da práxis temos a política e a ética.

A práxis e a poiésis diferem em natureza, e, portanto, para Aristóteles, em finalidade: a poética se realiza no produto, enquanto a prática possui, como anunciamos e como exploraremos, um tipo de finalidade “irrestrita”:

Há uma diferença entre produzir e agir […]; de sorte que a capacidade raciocinada de agir difere da capacidade raciocinada de produzir. Daí, também, o não se incluírem uma na outra, porque nem agir é produzir, nem produzir é agir. [1]

Essa diferença marca nossa descoberta: existe então uma esfera caracterizada pela interação entre os homens, que trata dos assuntos imateriais da relações políticas e éticas, e uma esfera que trata da relação que o homem mantém com a materialidade das coisas que dá forma, com o produto e objeto do seu trabalho. A própria origem da tekné dos gregos está intimamente ligada com esse saber-como-fazer (know-how) matério-formal, definido simplesmente como habilidade para fazer alguma coisa, que se perpetou inalteradamente na história da arte até a declaração de Leonardo da Vinci: “pintura é cosa mentale”.

A resposta, portanto, à indagação proposta no início deste trabalho é temporariamente dada necessariamente pela práxis, isto quer dizer que, só os homens, em suas considerações políticas e éticas, podem determinar o que fazer e o que não fazer. A poética se mantém fiel a essas decisões tomadas na esfera prática, e nesse caso é instrumento para os fins determinados praticamente. O artista ou designer está a serviço das decisões de outra ordem da atividade humana: a política propriamente dita.

Aqui devemos abandonar o termo “ideologia” se quisermos entender qual é a natureza das decisões externas ao projeto: de forma alguma pode-se entender a política pela via da aplicabilidade. Como veremos, a ideia de que existe uma Ideia platônica que deve reger os assuntos humanos é inapropriada às nossas considerações futuras. A política, caracterizada pela deliberação é, por excelência, não axiomática.

Pólis ^

Diz-se geralmente que o entendimento do que é política começa na observação de como funciona o mecanismo entre os interesses e a formulação de decisões. É verdade que toda a questão política poderia ser resumida em “como conseguir fazer o que se quer fazer”, e, portanto, é o caminho entre um interesse e sua realização que se deve estudar. Assim, é a questão de poder fazer que importa à nossa rápida definição de política. Entretanto, qual ação humana não se pauta nessa relação entre interesse e decisão? Nesse caso tudo é política? Qual a diferença entre o design e as outras atividades no que diz respeito ao potencial político?

Atividades simples do cotidiano podem ter relevância política em determinado momento dos seus desdobramentos? A soma de atividades insignificantes ou a indeterminação de certos empreendimentos pode tornar toda atividade potencial e perigosamente política? Esse é o questionamento natural que surge no primeiro contato com as especificidades da realidade humana esquadrinhada pela teoria política:

Enfim, a extensão da Política sobre a existência da humanidade chega a desafiar, praticamente, a nossa capacidade de enumeração. Porque tudo pode – e deve, a depender das circunstâncias – ser visto sob um ponto de vista político. É impossível que fujamos da Política. [2]

Essa afirmação pode chocar tanto os leigos, quanto os que acreditavam ter uma definição do que é política. É certo que ainda não tratamos das suas outras características, [3] e a segunda mais importante delas é que não se pode agir politicamente sozinho. A palavra pólis em grego provém da denominação dada às cidade-Estados gregas. O radical póli- significa “muitos” e já implica a presença de no mínimo três personagens para que haja empreendimentos potencialmente políticos:

[…] existe outro elemento na Política, que é necessário acrescentar à conceituação que fixamos atrás, […] este elemento pode se descrito como a natureza pública da Política. [4]

Tendo essas duas dimensões da política em mente, é importante notar agora que, dentro da tradição política, isso ocasionou uma série de distinções. A definição de pólis distinguiu a esfera pública da privada. Os gregos nos ofereceram o modelo mais claro desse tipo de organização ao perceberem que, em se tratando de política, logo de pólis, de uma coletividade que delibera e decide não só segundo seus interesses, mas também age em função da cidade e do bem comum, não seria apropriado lidar com os agentes políticos da mesma forma como se lida com os familiares e subordinados. Aristóteles, apesar de inicialmente derivar a estrutura política da comunidade em que tal hierarquia familiar predomina, reconhece na pólis um caso especial, que, ao fim, caracterizaria a maneira de convívio específica e verdadeiramente humana. Reconstruindo rapidamente o modelo aristotélico de surgimento da cidade – que corresponde à dimensão política do homem –, devemos entender primeiramente que para o filósofo as relações de comando e subordinação são naturais, ou seja, são encontradas na Natureza e, portanto, também regem primariamente as relações entre homem e mulher, senhor e escravos, pai e filhos. Desse modo, a inferência de que tais relações são uma questão de qual é mais apto ao quê – mandar ou obedecer – implica imediatamente admitir que ambos (eg. senhor e escravo) trabalham pelo mesmo bem. Naturalmente uns devem obedecer e outros mandar:

Porque aquele que possui inteligência capaz de previsão tem naturalmente autoridade e poder de chefe; o que nada mais possui além da força física para executar, deve, forçosamente, obedecer e servir – e, pois, o interesse do senhor é o mesmo que o do escravo. [5]

O que mantém essa relação natural de subordinação, segundo Aristóteles, é a providência das necessidades cotidianas. O princípio da família é obtenção dos recursos necessários à sobrevivência dos seres e, portanto, mais uma vez, deve respeitar a melhor maneira que a Natureza criou de garantir essa sobrevivência: o regime paternal.

Aristóteles nos demonstra que o segundo estágio de desenvolvimento da convivência humana é o que chama de pequeno burgo, onde algumas famílias se encontram agrupadas, mantendo a mesma relação de subordinação natural, dessa vez a um chefe ou rei que não nada mais é do que a transposição da figura do pai. A diferença então entre a família e o pequeno burgo é apenas dimensional, e, nesse aspecto, o homem ainda permanece na condição de puro e simples atendimento às necessidades biológicas.

Logo, é preciso perceber que essa ainda não é uma relação política, é o seu contrário. Para gregos a possibilidade de se estabelecer uma relação política só se torna possível a partir da superação das necessidades: estas não devem se intrometer nas discussões concernentes à cidade e à sua total supressão caracterizava, na Grécia antiga, o pré-requisito do estatuto de cidadão, aquele que poderia tomar parte nas decisões da pólis. Aristóteles sedimenta essa ideia na sua definição do homem como animal político, ou seja aquele que vive especificamente em cidade:

É evidente, pois, […] que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e que aquele que, por instinto, e não porque circunstância o inibe, deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem. [6]

O limite entre o espaço público e privado se torna nítido então. O cidadão grego estava inserido em dois contextos excludentes: um referente ao ambiente doméstico, no qual a relação de dominação em relação à mulher, aos escravos e filhos é fundamentada na necessidade, e outro referente à pólis, onde a cidadania se constituiria na presença de outros cidadãos, isto é, entre iguais na sua condição de libertos dos grilhões da necessidade. Em Aristóteles, toda concepção corresponde à observação da organização natural dos organismos, consequentemente sua visão da pólis é a de um ser natural, em que todas as partes trabalham para o bem do organismo. Assim, sua definição é de que o homem se agrupa entre familiares e escravos para garantir a vida, mas a finalidade da pólis é a vida feliz ou a vida boa. A razão de ser do homem se realiza na práxis.

A despeito da filosofia platônica na República, essa é a origem da teoria política clássica e por enquanto é suficiente para que entendamos qual é a procedência da teoria da ação em Arendt. Não será possível, no entanto, analisar a fundo as interpretações de outros autores políticos. Aos poucos temos feito concessões a alguns deles, como Karl Marx por exemplo, mas somente na medida das nossas necessidades.

***

Definir o problema da coletividade no campo político coincide com as considerações necessárias a uma definição do design como ação. Existe projeto fora da coletividade? Essa pergunta inocente poderia trazer mais problemas à tese em questão; afinal não se poderia considerar políticas as atividades projetivas individuais que não tivessem repercussões em segundos ou terceiros? De forma alguma: não se projeta no vácuo ou individualmente.

Autoridade e liberdade ^

Diz-se também que a Filosofia e a Filosofia Política nascem simultaneamente no momento em que, no famoso Mito da Caverna de Platão no livro VII da República, o prisioneiro liberto, já tendo contemplado a Ideia máxima do Bem, retorna forçadamente ao fundo da caverna, responsável agora por ditar, segundo os critérios que adquiriu na sua contemplação, a maneira pela qual os outros prisioneiros das sombras deveriam viver. Nesse movimento Hannah Arendt reconhece a primeira formulação teórica do que é autoridade. Essa explanação é de tal maneira capital às suas reformulações que ela irá perceber que a fundamentação grega do princípio da autoridade, que só ganha aplicação na tradição romana, herdada por sua vez na estrutura da Igreja Apostólica Católica Romana, sofre uma crise no mundo moderno. Para autora, de fato, a autoridade desaparece.

A análise que levará Arendt a tal conclusão é, antes, extensa; é na investigação das Origens do Totalitarismo que ela se coloca diante de um problema verdadeiramente novo, ou seja, segundo ela própria, impensável de acordo com todas as categorias políticas legitimadas pelo pensamento tradicional: os regimes totalitários e suas consequências como os campos de concentração. Mas, independente do que se possa encontrar de novo nessa experiência, o importante aos nossos propósitos é investigar aspectos do mundo onde o totalitarismo foi possível e as consequências dessa análise à redefinição de política.

É a partir desse livro que Arendt reencontra os principais problemas da política, dessa vez numa situação estranhamente privilegiada: para a pensadora alemã é em momentos de desnorteamento e perda de referência, tais quais a experiência totalitária impõe ao intelecto investigativo, que se oferece simultaneamente a chance de vislumbrar questões da condição humana livre dos preconceitos usuais que poderiam impedir nosso acesso à verdade de determinadas manifestações. No nosso caso, a política que sempre foi concebida pela via da legitimidade da autoridade [7], talvez nunca tenha sido revelada pela dignidade da ação humana.

O que Arendt fará em seu livro seguinte, A condição humana, é a dissecação da victa activa do ser humano, isto é, da vida das atividades em contraposição à vida do intelecto, em três categorias fundamentais: o labor, a fabricação [8] e a ação. A primeira caracterizada pela manutenção biológica do ser humano, é marcada por sua ciclicidade ininterrupta até a morte do indivíduo – ou fim da espécie –, sem que o processo resulte em produto algum. A fabricação é a construção do mundo estável e permanente do artifício humano capaz de transcender as gerações, e que se dá necessariamente pela transformação direta do mundo material – e que poderíamos já relacionar com a definição aristotélica de poiésis.

A ação, entretanto, merece um destaque: ela é a atividade que por natureza não produz nada em termos materiais, tampouco surge de uma necessidade biológica; ela é fundada sempre que os homens estiverem juntos em condição de igualdade em um estado de aparência onde todos possam ser vistos e ouvidos pelos outros. A ação, que por definição não tem nem motivo nem finalidade a não ser ela mesma, é pura espontaniedade. É ela que permite aos homens experimentar a pluralidade de sua condição terrestre, que se esvai no momento em que tal coexistência termina:

A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. […] Assim, o idioma dos romanos – talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como sinônimas as expressões “viver” e “estar entre os homens” (inter homines esse), ou “morrer” e “deixar de estar entre os homens” (inter homines esse desinere). […] A ação seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência com as leis gerais do comportamento, se os homens não passassem de repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, todas dotadas da mesma natureza e essência, tão previsíveis quanto a natureza e a essência de qualquer coisa. A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir. [9]

A política é feita de ação, e essa redefinição do que é a política atende a uma premissa da autora: “A raison d'être da política é a liberdade […]” [10]. Arendt verá no preconceito da definição de liberdade um problema exclusivo da vontade, nesse caso ligada a uma atividade espiritual da interioridade individual, uma questão da esfera privada, um impedimento à reflexão, e encontrará também no fim da autoridade a possibilidade de se pensar a política pela via liberdade (positiva [11]): possível somente no convívio plural dos homens. Essa liberdade, entretanto, tem um custo, e as consequências da política caracterizam a ação arendtiana:

[…] a ação, embora possa provir do nada, por assim dizer, atua sobre um meio no qual toda reação se converte em reação em cadeia, e todo processo é causa de novos processos. Como a ação atua sobre seres que também são capazes de agir, a reação, além de ser uma resposta, é sempre uma nova ação com poder próprio de atingir e afetar os outros. [12]

É essa capacidade de agir afetando e por afetação dos outros agentes que determina o conceito da “teia de relações”, central para a definição da “fragilidade dos negócios humanos”. O que garante que a ação humana possa ser verdadeiramente livre é a mesma coisa que causa o repúdio milenar à política: a sua ingovernabilidade, imprevisibilidade e irrevogabilidade. Esses três “males” foram, segundo Arendt, obscurecidos ou remediados por uma tradição de pensamento político ocidental que sempre tratou de normatizar a ação humana, seja através da autoridade capaz de estabelecer uma diferença entre os agentes políticos, seja através das teorias do Estado que o incumbiam de garantir as liberdades domésticas. Não é por acaso que as reações liberais à sujeira política declaram ser liberdade justamente o seu contrário: a ausência de política.

Ora, a novidade em Arendt é não só demonstrar que a liberdade só pode ocorrer na ação (pública e plural), mas também que a própria noção de poder difere da de força pelo fato dos homens, em seu convívio em empreendimento, serem capazes de coisas que sozinhos não seriam. Esse poder é político por excelência, e passa pelas questões referentes ao convencimento, à iniciativa e à coação. É preciso perceber a mesma diferença vista Aristóteles entre as propriedades da esfera pública e da esfera privada. Para Arendt, naturalmente, não pode haver poder ou liberdade na esfera doméstica ou particular.

O grande impacto de A condição humana é justamente a caracterização do que é humano. Não podemos perder de vista que é a constelação de labor, fabricação e ação que constitui a atividade propriamente humana. Arendt, no fim do livro, trata de colocar o movimento desses elementos numa perspectiva histórica e tenta analisar na Modernidade quais substituições e imbricações ocorreram. Aos nossos propósitos, no entanto, nos deteremos à definição de ação.

A fim de eliminarmos qualquer incoerência produto de uma má tradução do termo política devemos concluir: se tivermos em mente que a política, no sentido tradicional e arendtiano, é a mais direta expressão da capacidade humana de ação definiremos, a princípio, bem a relação entre as duas coisas. Não existe política sem ação, e no mesmo movimento alargaremos o conceito de desígnio na tentativa de correspondê-lo à esfera da atividade humana que não é o labor nem a fabricação.

Existe, portanto, uma tradição na definição do que é política que, segundo Arendt, sempre a fez ser pensada como “mal necessário” à garantia de liberdades autônomas e privadas e que sempre confundiu-nos com uma ideologia propriamente dita. Essa ideologia, como alguns dos projetistas perceberam, poderia aprisionar a validade da atividade de projeto sempre a fatores definidos externamente. Essa política aplicada, que nada tem a ver com a práxis humana, como Gropius percebeu, só traria impedimentos a uma definição própria e independente do design.

“A morte do autor” ^

O problema da identidade, portanto, em função do que tínhamos visto na análise sobre a responsabilidade do técnico e sobre o discurso performático, é outro: apesar do que se tenha discutido até hoje sobre o papel do designer enquanto agente social, e consequentemente da sua possibilidade de discursar e de interferir tanto na maneira como seu trabalho passa a ser visto quanto discutir o modo como o designer deve atuar, a questão permanece intocada.

Não é um antagonismo entre matrizes ideológicas de trabalho, em que geralmente se coloca Cranbrook numa extremidade e Bauhaus/Ulm em outra, que revelará o real problema da presença do projetista. Hannah Arendt relativiza a discussão, demonstrando que a despeito de qualquer consideração que se faça em relação à “expressividade” do autor, o problema da identidade não extrapola o problema da política:

Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o ator, o agente do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada através de palavras; e, embora o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada na qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer. [13]

Se é verdade o que temos visto, e o problema da ação segundo a autora realmente se define pelo seu contraste em relação à esfera da fabricação, então teremos que admitir de o comprometimento irremediável do projeto com a forma que produz talvez jamais permita ao designer agir projetivamente. Por meio de palavras e gestos, em si mesmo fugazes, e que não se dando por nenhuma via material, tampouco produzem – no sentido arendtiano do termo – qualquer coisa, essa imaterialidade necessária da ação, que caracteriza na política a liberdade humana, é o que garante que o agente seja enquanto aja politicamente, e tão somente aí; essa é a revelação de que nos fala a autora.

Ora, a identidade, ainda segundo ela, não é uma questão particular ou da interioridade, mas uma questão que se define na coletividade. [14] Portanto, o desespero em afirmar uma identidade, até mesmo por antagonismos, indica apenas que, independente do que designers, artistas e arquitetos tenham pensado até hoje, não há nada de errado com as particularidades de pensamento ou com as discordâncias de como se deveria proceder projetivamente. O cerne da questão é se eles podem ou não agir (arendtianamente) em projeto.

Identidade depende, portanto, da possibilidade de uma natureza política da atividade. No entanto, o que os projetistas sempre esperaram de uma atuação política foi justamente uma afirmação da presença clara do discurso. Nesse caso, como vimos, a possibilidade não estaria pautada no exercício da atividade de projeto, mas na atuação anterior e independente como político. Esse tipo de situação, como vimos, não apenas não resolve nosso problema de um definição política da atividade, como expõe a frustração a que todos os projetistas foram condenados assim que perceberam o problema da ideologia, ao qual eles estavam entrelaçados por necessidade. A tentativa da atuação ética em Gropius visou justamente à resolução desse problema, e se confrontou com o paradoxo de uma atuação por si mesma, não ideológica, que no entanto não poderia ser alienante. O fundador da Bauhaus está de tal modo ciente desse limite que o projeto educacional é a única saída para o impasse do projeto pelo projeto: só a certeza da consciência do projetista fará como que ele não ceda a despropósitos, sem que no entanto aja da maneira como vimos; os alunos formados na Bauhaus e na sua herdeira de Ulm certamente não foram instruídos em como agir politicamente, no sentido estrito que definimos, e sua condenação por inação é certa por inaptidão. Nem eles nem nós estamos preparados para “sujar as mãos” na política, e o que Gropius certamente não soube ensinar a seus alunos foi como ser seus próprios clientes.

A dificuldade de definir um agente designer é o que nos dará, novamente, a possibilidade de repensar nossas chances. A aparição do designer político, aparição tal e qual na política é praticada, não nos libertará, como agentes sociais, da dependência: estaríamos subordinados, no máximo, a nossos próprios colegas, o que talvez fosse muito pior, pela inapropriada diferença que se alegaria entre aqueles que devem determinar e aqueles que devem formalizar. Antes o que parecia a impossibilidade da política, pode ser talvez a única saída para o design político: a morte do seu designador.

Entretanto, isso não é de qualquer modo uma contradição, e o que se deve perceber, por hora, é que a política do design não pode ser a mesma política determinada pela ação arendtiana. O desaparecimento do fabricante no término do processo de configuração implica uma nova condição de existência da forma. Ela agora existe por si própria, independente do que se possa dizer das suas origens e provoca as suas próprias reações no interpretante: não interessa o que o seu designador possa dizer a seu respeito, a forma já não respeita seus princípios porque não está sob controle, e a previsão feita a seu respeito termina no momento da sua conformação; não existe previsão além da previsão de conformação. O projetista não pode designar a interação de outros agentes com a forma; por mais que esta tente funcionar como mediadora de interação humana ele não pode realizar essa extradesignação a não ser que considere os outros sujeitos como objetos.

O silêncio das formas termina no ponto em que o projetista silencia, e todas as implicações desse silêncio são imprevisíveis e ingovernáveis, porque dependem justamente da contribuição dos agentes externos e posteriores: os interpretantes, tal como afirma Roland Barthes no fim de seu famoso texto “A morte do autor”: “[…] o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor” [15].

Nesse sentido, o designer talvez possa agir, mas, ironicamente, sem jamais saber. Sua atuação é silenciosa porque ele não pode fazer nada além de conformar, dar forma. Esta, a partir daí, tem uma vida que não lhe concerne mais, e tampouco a ideologia que a possa ter dado origem.

A revelação do agente no ato, que Arendt nos diz, não acontece no caso da política da forma. Aqui termina nossa suposta contradição: o agente é o ato, e não há autor antes da forma, como Barthes novamente indica:

[…] o escriptor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto; não é, de forma alguma, dotado de um ser que precedesse ou excedesse a sua escritura, não é em nada o sujeito de que o seu livro fosse o predicado; outro tempo não há senão o da enunciação, e todo texto é escrito eternamente aqui e agora[16]

E agora, tendo contemplado o problema da ação de uma maneira mais precisa, é possível perceber qual são os principais impasses do argumento de Mário de Andrade ao propor um materialismo anti-individualista como saída da produção artística para a coletividade.

Primeiro seria necessário aceitar que esse envolvimento pudesse produzir diferença perceptível na configuração; não podemos negar que o ascetismo de Gropius e de outros formalistas realmente venha a existir concretamente, mas talvez não praticamente, afinal como concluímos, a “leitura” dessa formas não é de qualquer modo previsível ou controlável, e basta atentarmos para a proliferação do – abominável, segundo Gropius – “estilo internacional” para que tenhamos a dimensão dos desvios que podem ocorrer. O projetista conforma, mas suas formas, independentes do envolvimento do processo, permanecesse silenciosas, e suas motivações primeiras veladas. Não é o artista que define a forma, e sim o contrário, e se não pudermos perceber um artista diferente – e talvez nem o possamos perceber – não teremos em termos práticos diferença alguma.

E isso nos leva à segunda conclusão do argumento de Andrade: uma ética advinda do envolvimento do projetista com o processo de formalização (o “procedimento estético”) só poderia ser coletiva se toda a sociedade fosse homogeneamente artística. A não ser que todos os egos da sociedade sofressem os mesmo limites da adoção de “atitude estética”, a impossibilidade do indivíduo projetista extrapolar os limites da produção formal se perpetuaria. [17] Ou todos participam desse suicídio coletivo, ou as interferências do artista permanecerão, pragmaticamente, idênticas e irrelevantes como reveladoras de discurso.

O artista pode, então, ser sacrificado, mas por uma causa perdida. Esse sacrifício psicológico não deveria ser levado a cabo pelo simples fato, não apenas de ser inútil, mas, por natureza, todo projetista já se encontrar morto, e o que vemos dele – ou que achamos que vemos dele – é um espectro definido pela forma[18] Isso que seria uma benção ao formalismo ético é antes uma catástrofe para a própria noção de controle e alteração das condições sociais; o projetista, ausente e incapacitado de projetar além do projeto, permanece, não só com o ego domado, mas com a frustração de não conseguir operar mudança da sua prancheta/laboratório/ateliê. As formas que produz o definem, mas não garantem o resultado esperado.

O conceito de autoria já não atende aos nossos propósitos de entendimento, e essa é sua segunda e definitiva morte do autor. No seu lugar devemos ter em mente, de acordo com a perspectiva pragmática-teleológica da fabricação, a imagem da máquina, que pode produzir e alterar forma, segundo os critérios estabelecidos em outra instância, sem no entanto que possa definir o valor próprio da sua produção, e que, em vez de se revelar como agente, ator ou autor de discurso, é projetista pelo arranjo de elementos em conformação por intervenção externa, tão externa quanto a origem da sua própria existência. A máquina não está morta, nem está viva, é simplesmente produtiva, e o que produz a define; ou seja, ela só existe per-formaticamente.


O problema do design como ação ^

Cada coisa, em suma, está presente no palco porque, cedo ou tarde, chegará o momento em que deverá entrar em ação; sua condição é uma condição de espera, que será sucedida, uma vez concluída a ação, pela volta à imobilidade e ao silêncio.
— Giulio Carlo Argan

Em resumo ^

A pergunta fundamental e primária deste trabalho é: o design pode ser um tipo de ação, isto é, possuir alguma dimensão política no sentido arendtiano? À primeira vista cabe alertar que se considerarmos a hipótese como verdadeira iremos comprometer muito do que foi afirmado sobre o design até hoje. As considerações aqui são sobre a prática, e a maneira de iniciar a comprovação dessa tese é demonstrando que o design, segundo os critérios arbitrariamente tomados de Arendt, como atividade dada dentro de uma pluralidade, não poderia deixar de ser, de alguma forma, política.

Dizer que o design é ação implica imediatamente admitir que sua natureza é mais do que técnica, ou melhor, que extrapola a definição arendtiana sobre o que seria fabricação, ou seja, a atividade humana que “produz um mundo ‘artificial’ de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural” [1].

Já se poderia argumentar rapidamente que talvez todo trabalho arendtiano possa também ter relevância política, já que empreendimentos no mundo material podem afetar a todos nós (até em escala mundial) e, assim, dizendo respeito a vida de todos, são necessariamente questões de ordem política. Já demonstramos no problema da ideologia e do projeto, mas a chave da questão é a possibilidade do discurso: “Sempre que a relevância do discurso entra em jogo, a questão torna-se política por definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político” [2]. Este é o principal impasse: um design que não seja discutido talvez não possa jamais ser considerado nesses termos. Se quisermos enxergar uma relevância política natural a todos os projetos humanos precisamos encontrar em algum lugar indícios de algo que possa ser considerado um discurso, que se anuncie de forma pública.

O que não é tão difícil perceber é que o crescente interesse numa definição do design pelo processo seja, na verdade, uma tentativa de estabelecer a possibilidade de discurso sobre a própria atividade de projetar, conferindo assim, por meio da fala, algum sentido à nossa produção. Se houvesse alguma lição imprescindível expressa neste trabalho seria a seguinte: criar e veicular objetos no mundo, assim como atender a demandas de procedimentos, por si só, não têm significado algum. É o caso de um meio para atingir um fim. Para que se descubra qualquer razão de ser da atividade de projetar, é preciso mais do que uma descrição dos objetos que indicam sua existência, ou do processo que a singulariza, será preciso que agentes discursem por design. E, no entanto, se a própria noção de agente descrita por Arendt ainda é estranha ao nosso contexto, demorará mais tempo para que possamos conceber a ideia do design como ação.

De fato, em que momento podemos definir a atividade de projetar como sendo política? Será que na eventualidade de grandes empreitadas governamentais, isto é, em projetos de gerenciamento ou planejamento que se deem numa escala nacional, ou será nos estardalhaços de pequenos projetos ruidosos, ou ditos engajados, que adotem posições políticas, no sentido ordinário da palavra, bem definidas, como em uma campanha ou em um protesto, individual ou não? Considerar um ou outro caso como naturalmente político, como vimos no problema da ideologia, seria perder o ponto realmente importante. Nada impede que sejam políticos por princípio, mas se não conseguirmos salvar a dignidade da política, pelo menos tentemos manter a propriedade da palavra “política” dentro deste trabalho. Essa, no sentido arendtiano, surge no contexto em que a preocupação maior é em entender uma dimensão da atividade humana, mais do que tentar traçar justificativas partidárias. Não importa a posição que se tome, a questão é estudar o espaço, o movimento, a especificidade de aspecto da nossa condição. É importante deixar bem claro que não nos interessa traçar as alternâncias esquerdistas ou direitista, suas propostas, sua trajetória histórica ou mesmo a importância de sua dicotomia neste trabalho; política aqui é simplesmente (e de maneira complexa) a condição mundana dos homens que dividem a Terra uns com os outros e são vistos e ouvidos uns pelos outros. É o espaço da pluralidade.

O discurso (a partir) da forma ^

O impasse do design como discurso é que este não pode, a princípio, preencher os requisitos do discurso arendtiano que caracterizam a política: ele teria de ser, por definição, aformal, não poderia estar consolidado sob nenhuma forma, nem mesmo de texto. O problema de todo o discurso poético reside aí: ele pode ser livre? A condição de fugacidade do discurso não é um mero capricho da autora; é o que caracteriza mesmo a liberdade deste e que, em teoria, distingue a esfera da fabricação da esfera da ação. Nosso esforço, portanto, é não só em encontrar a possibilidade de uma natureza imanentemente política do design como também caracterizar essa política.

Se o design precisa se apresentar como discurso para ser considerado político, e esse discurso deve ser um enunciado interno, não a transposição de discursos externos, também precisa respeitar a imaterialidade para ser caracterizado como ação livre exclusivamente humana, então ele precisa não só encontrar um modo de abstrair o discurso da forma como também encontrar alguém que possa lê-lo e reagir a ele. Esse é todo o problema da moralidade dos objetos e da ética estética, que permanece insolúvel, já que ainda não foi possível definir como os objetos falam.

O que a Semiótica dirá, contrariamente, é que os objetos, como conjunto de signos, dizem efetivamente coisas, no entanto eles referem, e essa referência que todo signo faz é radicalmente diferente do discurso político que procuramos. É mais próprio dizer que os signos indicam, e essas indicações são definidas externamente ao projeto; são decisões que atendem aos pressupostos do briefing e que condicionam o entendimento do interlocutor a uma única interpretação – a leitura do referenciado –, o que não pode ser caracterizado como uma reação imprevisível, como em Arendt. A leitura semiótica é indicativa, não ativa. O objeto permanece como mediador de referenciados que discursam enunciados externos ao projeto dos referentes, e nesse caso, para a Semiótica, toda leitura da forma é leitura do briefing.

Portanto, o sentido da fundamentação do discurso da forma é diferente do objeto de estudo da Semiótica, e para melhor expressar seu significado seria mais apropriado entendê-lo a partir da forma, já que entendemos que a autoria não está em discussão aqui, mas, sim, – e aos poucos iremos nos acostumando com essa ideia – os efeitos que a forma dá origem. Por isso cabe falar em um discurso ab-formático, em contraposição a um per-formático.

E esse é o mesmo sentido da retórica do design que Richard Buchanan, em seu texto “Rhetoric, Humanism and Design”, tenta estabelecer como indicativo de um humanismo da atividade projetual, em outras palavras, do valor do design. Buchanan reconhece a mesma diferença que nós percebemos entre a esfera pragmática e a esfera política da forma:

[…] a poética dos produtos – o estudo de como eles são – é diferente da retórica dos produtos – o estudo de como os produtos vem a ser veículos de argumento e persuasão sobre as qualidades desejáveis na vida pública e privada. [3]

Independentemente da análise histórica da evolução dessa relação – a noção da poética como discurso nascida em Aristóteles, [4] passando pela arquitetura retórica do Renascimento até, segundo o autor, a ruptura entre o fazer e o designar na Modernidade, assim como entre o desígnio e o trabalho intelectual – reconhecemos o mesmo problema de uma fundamentação discursiva do design[5]

No entanto a questão da forma como é colocada por Buchanan difere ligeiramente da nossa exploração ontológica. O autor ainda reconhece que alguns indivíduos teriam a capacidade de recuperar esse humanismo, que atestaria uma síntese dos opostos – teórico e prático, ideal e real, cognitivo e não cognitivo –, [6] em uma atividade, afinal, ética. Portanto, não estamos distantes nesse caso de algo já percebido por Walter Gropius e Mário de Andrade. O humanismo que Buchanan quer encontrar como possibilidade do fazer está em si mesmo comprometido com a esfera racional (bem ou mal Gropius também buscava essa síntese), pois ele surge no Renascimento como “um movimento de confiança na razão e no espírito crítico” [7].

Talvez o próprio humanismo, como único item necessário à exclusividade humana da produção, deva ser reconsiderado, porque seu resultado lógico pode ser, como vimos, a simples otimização dos processos econômicos – não há como otimizar o procedimento ético – rumo a uma panaceia tecnológica.

Logicamente o problema do humanismo sempre foi o do valor humano, no entanto, a Razão não pode dar conta disso sozinha, como foi descrito na primeira parte deste trabalho, e a política se impõe como condição sine qua non do critério de humanidade.

***

Talvez devemos creditar a política (a partir) da forma aos críticos e escritores que a traduziriam em palavras? Ou seria talvez como Walter Benjamin colocou a relação entre a qualidade e tendência política de uma obra? Na análise de O autor como produtor [8], o tema central é a produção literária, mas no nosso caso podemos entendê-la de uma forma mais ampla:

Pretendo demonstrar-vos que a tendência de uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário. Isso significa que a tendência politicamente correta inclui uma tendência literária. […] Portanto a tendência política correta de uma obra inclui sua qualidade literária, porque inclui sua tendência literária. [9]

Essa conclusão é, em suma, muito próxima da de Mário de Andrade: não há como separar a decisão formal da intenção política. Apesar de não podermos negar isso, ainda permanecemos presos a uma definição instrumental dessas decisões, e nada impede que estas só sejam tomadas na medida em que estejam de acordo com o briefing; bem ou mal é assim que todo projetista age: julgando cada decisão em função de algo definido previamente.

Não devemos procurar a solução para a política da poética no processo de conformação: já está atestado que nesse caso a mentalidade própria é aquela que define as coisas pelos seus resultados e que define que toda eficiência é referenciada, e os fins são particulares e não irrestritos. Enquanto insistirmos nessa concepção não avançaremos além dos resultados absurdos do anteprojeto e do antiprojeto, como veremos mais a seguir.

Caixa-preta ^

A distinção entre práxis e poiésis implica um entendimento também distinto do que é a experiência da realidade. Poeticamente, no que concerne à relação entre homem e forma, não há um problema da realidade, ela não constitui uma questão, mas apenas a condição de execução e validação da eficiência da forma. Charles Sanders Peirce coloca, portanto, de maneira absolutamente clara esse fato afirmando que a realidade, por definição, é algo que independe de nós ou de nossas considerações. O filósofo também define como deveríamos guiar nossos conceitos partindo de uma lógica instrumental que nos demonstra que a coisa sempre é entendida pelos efeitos que produz. Desse modo, na relação entre homem e forma, o problema de adequação ou fidelidade ao conceito já está resolvido pelo fenômeno, que determina de maneira direta sua eficiência ou não. Mas até aí nada foi dito, pois todas as coisas do mundo – e isso equivale subjetivamente a tudo aquilo que não sou eu – permanecem silenciosas.

Essa eficiência, entretanto, é não só determinante ao pragmatismo, necessário ao design industrial moderno, como também à esfera da fabricação. Essa mentalidade serve justamente aos propósitos industriais modernos e, na verdade, elimina, como vimos, o problema da realidade. Não só planifica o terreno onde o projeto acontece ao definir todas as coisas pelos seus efeitos, como delimita a própria noção de controle e previsibilidade que esses movimentos exigem. O pragmatismo coloca os termos da produção maquinal e condena, simultaneamente, nossa capacidade de atravessar a necessidade de enunciados externos em direção a uma atuação política da mesma qualidade definida por Arendt: enfim, a possibilidade de se iniciar algo novo e inesperado.

Apesar disso, seria irrefletida a tentativa de afirmar a criatividade como fator indiscutivelmente humano. Assim, se tentássemos definir a criatividade humana pelos seus efeitos, de fato eles não seriam muito diferente dos procedimentos de procura de respostas satisfatórias a determinados problemas. É possível arriscar que a criatividade não passa de um procedimento de reavaliação dos parâmetros do problema sob uma óptica antes inexplorada, revelando que o processo, tal qual o processo de busca de soluções possíveis dentro do design, poderia ser programático, visto que ainda está umbilicalmente ligado ao briefing.

Talvez uma situação hipotética proposta por Alan Turing para explicar a possibilidade da inteligência virtual nos ajude a compreender a maneira pragmática como se coloca o problema da revelação da criatividade na forma. O jogo da imitação, em Turing, pode ser descrito basicamente da seguinte maneira.

Tem-se três pessoas: um homem (A), uma mulher (B) e um interrogador (C). A e B permanecem separados de C em outra sala. O objetivo do jogo é que o interrogador, através de perguntas de qualquer natureza, adivinhe qual é o homem e qual é a mulher. Agora, o que Turing propõe é que se substitua um dos dois interrogados (o homem A, por exemplo) por um computador. Se a máquina puder enganar o interrogador, e segundo a tese de Turing isso é possível, então ela é inteligente.

O chamado teste de Turing está em perfeita consonância com a conclusão lógica da proposição de Peirce: se duas coisas produzem o mesmo efeito, então elas são a mesma coisa. De fato, o argumento de Turing é de que “a imitação bem-sucedida da inteligência é inteligência” [10]. De maneira análoga poderíamos conceber o procedimento criativo na poiésis. Não há exclusividade humana a defender na atividade criativa: se uma máquina puder nos enganar com uma forma que possamos dizer ser criativa, então ela será tão capaz de criatividade quanto um ser humano.

Essa é lógica de funcionamento de toda a atividade poética, e sendo toda ela apenas meio para finalidades determinadas externamente, não apresenta em si nada que até agora permita a novidade e imprevisibilidade de que é feita a ação humana.

Talvez fosse a experiência do Belo o último panteão da poética da humanidade? Certamente o julgamento estético, como foi descrito por Kant, não seria possível a nenhum ser que não experimentasse sensorialmente o fenômeno. Quanto a isso poderíamos assumir que a experiência do Belo, como o filósofo chega a conclusão, é tipicamente humana. No entanto a pergunta não é se poderíamos maquinalmente experimentar o Belo, mas se maquinalmente poderíamos produzir o Belo. Esse problema permanece na medida em que se admite que pode existir um Belo que não seja fruto da atividade humana. Enfim, há alguma Beleza na Natureza? Uma colmeia, um pôr do sol ou uma flor pode ser bela? Em caso positivo, admitimos imediatamente que uma máquina, tal como um animal ou um fenômeno natural, pode produzir o Belo, sem que no entanto possa experimentá-lo, ou mesmo estar consciente da sua produção. Mas devemos resguardar essa possibilidade: de que enquanto pudermos produzir o Belo teremos uma boa justificativa para nossa atividade.

O que torna a questão mais complexa do que as consequências do pensamento de Arendt é o fato de o próprio pragmatismo descrito por Simon, e por outros designers modernos, não nos permitir uma validação externa do design, e tampouco uma justificativa interna. Significa dizer que a definição moderna industrial da atividade não consegue trazer significado ao design por mais que tente encontrar no seu próprio fazer um procedimento ético. O valor do design não se encontra nem nos seus resultados, nem nos seus ingredientes e nem no seu processo.

O anteprojeto ^

O que tanto o argumento de Margolin quanto o de outros designers autores que se esforçaram em definir uma relevância própria da atividade de design esbarraram é que talvez todas as resoluções políticas envolvidas no projeto sejam, de fato, anteriores a este.

O que torna nossa investigação tão difícil é que, tendo em vista os produtos do design – as formas produzidas –, não é possível afirmar que as decisões de projeto não tenham sua origem no briefing, ou que pelo menos respeitem as decisões descritas nele. Não é possível negar que a decisão, o comando “vamos começar!” descrito por Schutz, seja anterior ao projeto, e que dessa forma sua razão de ser lhe seja sempre externa.

O que chama a atenção dos designers e que motiva seus discursos é que, diante do fato de eles atuarem como executores técnicos de um desígnio externo, eles também se sentem na qualidade de homens. Esse incômodo incita à responsabilidade, sendo a possibilidade da ausência de ética no exercício da atividade o que os inquieta.

Ora, somente a mesma coisa que dá validade externa à atividade técnica pode também julgar seus produtos, e é a política que lhe é externa que pode dar valor à sua produção. Em suma: o técnico não pode responder pelas consequências dos seus atos, sem que no entanto deixe de ser homem dotado de moralidade tal como os outros. Desse impasse o trabalho poético não pode se libertar e procura então em vão outro deus a que servir, sem que no entanto perceba que sua subordinação à validade externa sempre o condenará, se tudo o que foi dito assim for, à ausência de significado próprio. Nem os designers, nem os arquitetos, nem os mais lúcidos cientistas jamais puderam concordar com tal condição, mas isso somente porque, apesar de suas ocupações, eles eram homens, e se Aristóteles estiver certo, políticos por natureza.

O argumento de Arendt, como vimos, nos impede de fundamentar na própria poética o significado de sua produção, mas, apesar da barreira que isso possa criar, revela igualmente nas razões da dificuldade da fundamentação política do design o motivo pelo qual devemos continuar estudando a questão. A condição de imaterialidade dos meios de existência, da ausência de finalidade produtiva e da fugacidade que especificam o campo da ação e limitam o campo do design, demonstram que essa crítica na verdade vem acompanhada da elucidação de que todo nosso esforço deve ser no sentido de encontrar uma política da poética que seja o espaço da liberdade e do novo, como em Arendt.

A princípio é impossível, e isso pelo fato de que de início queremos dar a volta no argumento da autora: encontrando outra via para fundamentar o design político, utilizamos inapropriadamente os critérios arendtianos sobre essa política. No entanto fazemos isso com intuito justo de por à prova tal “política” e ver se ela apresenta as qualidades que procuramos. Que decisão política o design pode tomar, enfim, tendo em vista a empreitada dos designers políticos e os limites impostos pela ação arendtiana? Algo provavelmente, como dissemos, externo à produção da forma, e imaterial e fugaz segundo as exigências da ação: a aceitação ou recusa do enunciado do projeto [11]. Somente nessa decisão podemos pautar todas as responsabilidades (social, cultural, ética e profissional) apontadas por Frascara por ser ela que permite ao projetista advogar em defesa da existência das coisas que produz. Antes do projeto, e antes da decisão de projeto, tudo está em espera, e todas as ações são possíveis. Não existe nada que indique o que devemos fazer [12], e, portanto, a fabricação de alguma coisa indica a existência de uma intenção, qualquer que seja, de modo algum explícita, mas apenas interpretável. O projetista, ao recusar ou aceitar fazer alguma coisa, participa politicamente, mas sua ação termina nessa decisão, e todo o processo de conformação observa outras regras.

Por enquanto essa parece ser a única ação que o técnico é capaz, e de fato ela respeita as condições que encontramos em nossa investigação sobre a natureza das coisas. É a possibilidade de recusa, especificamente, que pode fazer do técnico político, no entanto ela é anterior ao projeto.

Novamente a dicotomia do problema se impõe e o que parece restar aos homens projetistas é, ainda de maneira legítima, a atuação anterior ao projeto nos enunciados que eles mesmos podem propor. São os projetistas trabalhando como editores, fabricantes ou produtores.

O antiprojeto ^

Se retornarmos à concepção arendtiana de política perceberemos que os impedimentos à transcendência do design da esfera da fabricação se revelam não só na condição da imaterialidade e da fugacidade. Estamos preparados, como projetistas, caso fosse mais fácil definir a condição política do projeto, para aceitar os “males” da ação? Isso é tão determinante quanto os outros aspectos, porque também é condição da liberdade humana: o projeto, se político, estaria preparado para sobreviver à imprevisibilidade, à irrevogabilidade e à ingovernabilidade de seu próprio movimento?

O pragmatismo afirmaria inconscientemente em favor de Arendt: que esse fator mesmo é a impossibilidade do design como ação, já que tudo que diz respeito à esfera da fabricação exige previsão e controle necessários ao princípio da eficiência, que é o que dá vida mesmo a essa esfera. Seria uma contradição afirmar que o projeto corresse sempre o risco de sofrer esses males se o que ele justamente busca fazer é remediar o problema criando a estabilidade do mundo das formas.

Mas e o que diria a moral do técnico diante das consequências dessa definição de política? Estaria pronta para aceitar a possibilidade da “ação suicida” que não visa outro fim senão à sua própria realização? Não seria talvez um preço muito alto a pagar? Essa suposta incoerência, entretanto, é o que reforça a nossa dificuldade de problematização: o design, se for político em si mesmo, não subserviente a enunciados externos, talvez não possa ser da mesma qualidade que essa política que caracteriza a nossa humanidade. Os designers correm o risco de serem políticos somente no nome, sem jamais conseguirem escapar da materialidade da forma a que estão comprometidos e às regras que o mundo da fabricação impõe à sua produção.

O próprio processo produtivo, que é constituído por um encadeamento de habilidades específicas, como foi descrito por todos os metodólogos como Jones, já foi discutido em termos políticos, como fez John Ruskin no começo da consolidação da divisão definitiva e atômica de tarefas dentro da indústria. Numa palestra proferida em Manchester em 10 de julho de 1857, Ruskin encontra na alienação do operário em relação a seu trabalho o motivo da decadência dos produtos industriais. No entanto, pensar hoje nos mesmos termos, tendo em vista as dificuldades que encontramos até aqui, seria desviar o assunto para os problemas da macroeconomia, como faz Margolin. Se, como muitos designers, tentarmos questionar o processo produtivo, criando projetos que viram de cabeça para baixo processos estandartizados, e que às vezes obrigam esses mesmos operários a contribuir nas decisões formais – sem que vejam qualquer relevância nesse fato, ou mesmo enxerguem o significado que o projetista que criar – permaneceremos muito distantes do problema da política do design. O que se questiona nesse tipo de empreendimento é a própria natureza do pragmatismo exigido pela esfera da fabricação. Geralmente quer se trazer o acaso para dentro do processo, tentando com isso se libertar do condicionamento dos meios aos fins. Benjamin, ao discutir a “diferença essencial que existe entre abastecer um aparelho produtivo e modificá-lo” [13], tentou encontrar outro papel para o autor, que agora deveria ser capaz de interferir de maneira significativa nos meios de produção, produzindo de maneira não assimilada:

Também aqui, para o autor como produtor o progresso técnico é um fundamento do seu progresso político. Em outros termos: somente a superação daquelas esferas compartimentalizadas de competência no processo da produção intelectual, que a concepção burguesa considera fundamentais, transforma essa produção em algo de politicamente válido; além disso, as barreiras de competência entre as duas forças produtivas – a material e a intelectual –, erigidas para separá-las, precisam ser derrubadas conjuntamente. [14]

Entretanto o próprio Benjamin reconhece a dificuldade dessa formulação concluindo que, afinal, somente uma exigência pode ser feita a esse autor: “refletir sobre sua posição no processo produtivo” [15]. De certa maneira esse é o ponto de partida de Gropius ao defender um procedimento racional e lúcido de formalização dentro de qualquer contexto produtivo. O arquiteto parece antever o problema de uma formulação plenamente política como a de Benjamin, e já faz dessa dificuldade a pedra angular de seu trabalho: não é possível modificar os meios, devemos portanto encontrar uma possibilidade ética de produção.

Os resultados de projetos ruidosos que tentam questionar sua própria natureza fabril não sãos, portanto, ações. Os produtos desses esforços serão tão silenciosos quanto quaisquer outras formas, e os breves momentos de anomia industrial serão precedidos pela volta à normalidade insignificativa do trabalho alienado. Essas são somente tentativas de fazer dos meios fins, tal como vimos numa forma pro forma, e tal como (Gropius alerta) numa alienação do processo pelo processo.

Terminologia ^

O que pode ter passado despercebido é o que estava implícito na nossa própria definição do que é forma. Se a configuração estável que constitui a forma é criada por intervenção externa, a justificativa e validade desta naturalmente também só pode ser externa, como vimos no papel da “ideologia” anterior ao projeto segundo Argan. Isso deve nos manter atentos então para a dificuldade que a Gestaltung poderia oferecer à sua própria definição política: a forma sempre será instrumento da política.

O que na verdade mantém viva a inquietação deste trabalho, e não permite que nos entreguemos a uma apressada definição do papel técnico e moral dos homens projetistas, é que a palavra desígnio parece carregar alguma conotação ainda não vislumbrada. Poderia uma máquina designar? Nesse momento devemos abandonar a fórmula design = projeto se quisermos continuar nossa investigação ontológica.

Quando Arendt afirma que o problema político do “que fazer” extrapola a esfera da ciência e da técnica, ela demonstra que o problema é de designação:

A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico [aquele capaz de destruir a vida orgânica na Terra ou fazer qualquer outra coisa, como vimos] – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos; é uma questão política de primeira grandeza […]. [16]

E se temos em mente a lógica imperativa do “dever” que Simon afirma ser necessária à caracterização do design, poderemos perceber que existe algum estranho indício de capacidade normativa expressa na palavra desígnio.

Mas antes, para compreendermos a questão do estranhamento do termo, devemos colocar em pauta novamente o significado da teleologia: como Kant estranhou que a natureza parecesse ter finalidades, nós também somos levados a acreditar que todo fenômeno acontece em função de alguma coisa, mas isso é não de qualquer modo natural. Só um intelecto capaz de permanecer, de certa maneira, “paralelo” ao processo pode interpretar o fenômeno em termos de causa e efeito, e as coisas que existem independentes da intervenção desse intelecto não podem ser tidas como fruto de design. E quando os biólogos insistem em dizer que os organismos foram designados de modo magistralmente eficiente para exercer determinada função, eles, sem o saber, estão apelando à chamada Teologia. O grande impacto da teoria de Charles Darwin é a conclusão de que a natureza existe do presente modo sem desígnio: as coisas simplesmente existem, e não há problema em admitir que elas funcionem, ou sejam eficientes, no entanto dependentes do acaso para evoluir. Evolução esta possível somente em períodos muito longos de tempo – em relação ao tempo da experiência humana –, responsáveis por essa adaptação que parece fruto do intelecto.

O desígnio, ao contrário, é um outro procedimento que necessita do controle de causa e da previsibilidade de resultado como instrumentos para lidar com os problemas da realidade, prescindindo assim do acidente como recurso da mudança do status quo. Essa contraposição entre desígnio e acaso [17] se pauta, portanto, na possibilidade de, redefinindo o conceito de forma, apartar design de fabricação:

Diferindo, pois, o produzir e o agir, a arte deve ser uma questão de produzir e não de agir; e em certo sentido, o acaso e a arte versam sobre as mesmas coisas. Com diz Agatão: “A arte ama o acaso, e o acaso ama a arte”. [18]

É curioso que Aristóteles nessa passagem reconheça a natural relação entre poiésis e acaso, pois, como vimos, o esforço em reduzir toda margem de acidente é o que caracteriza o desígnio. E também Arendt afirma o contrário: é somente na ação que o novo, o inesperado, é possível. Que esperar então? Que o projeto possa oferecer espaço para o acaso, ou que a política do design seja em si mesma morta para o novo?

Mais uma vez é estranha então uma correspondência exata entre desígnio e poiésis. Desígnio deve ser entendido, primeiramente, como não acaso. Isso não por sua antieficiência, mas, sim, pela necessidade de intelecto. Não existe projeto sem intelecto[19]

O que se pode extrair dessa passagem aristotélica é que o fenômeno novo pode ocorrer ou por acaso ou por desígnio – e nesse sentido tão somente práxis, porque se existe tal diferença entre práxis e poiésis, o que Aristóteles diz é que no produzir o acaso é a única origem possível do novo. Essa, no entanto, como vimos, apesar de ser uma hipótese que não podemos descartar, é antipragmática, isto é, possível somente pela antieficiência, pelo erro.

O que Arendt oferece como alternativa – e essa é realmente uma novidade dentro do pensamento político moderno – é a possibilidade de um novo não por acaso, mas por ação humana, por práxis. O impacto de tal afirmação é a redefinição de uma política que é o espaço da espontaniedade e liberdade humana.

Ora, o desígnio, que não pode ser antidesígnio, isto é, basear-se na sua própria falha, o antiprojeto, só pode experimentar o novo praticamente: o desígnio deve ser algo diferente do processo conformativo da poiésis, já que por definição ele é não acaso.

Por isso a dualidade que devemos estabelecer então não é a de uma prática da ideologia e uma poética da conformação, mas uma prática do intelecto projetivo e uma poética da eficiência da ação.

Essa poética da eficiência da ação pode ser entendida, por presunção de causalidade, como procedimento de busca de respostas satisfatórias em um grupo de incontáveis respostas a determinado problema, como demonstrou Simon ao tentar fazer do design uma ciência. A pergunta fundamental portanto de tal definição era “como resolver determinado problema”, dando lugar mais propriamente a “como resolver, dentro das condições de análise, da melhor maneira determinado problema”, culminando finalmente em “como estabelecer um procedimento seguro e válido para toda resolução de problema”. Entretanto, quando tentamos definir a validade do design, procurando no seu próprio exercício uma justificativa que não seja somente a da forma segue a função, entramos na esfera valorativa que nos indagará “por que fazer tal coisa e não outra”. A tentação imediata seria então ver na capacidade de designação o atributo exclusivamente humano capaz de gerar valor; mas ainda nada que nos liberte da exclusividade da única atividade política que o técnico é capaz: a recusa do briefing. No entanto, não é preciso que se procure exclusividade humana na capacidade de projetar, mas apenas a implicância da presença do intelecto.

Assim a definição da possibilidade do fenômeno novo na prática do intelecto projetivo advém do fato do dito acaso, nessa esfera, ser na verdade fruto da ação humana, do fato das interações entre formas (elementos estáticos) e agentes (elementos mutáveis) não ser imprevisível. É possível perceber que a estrutura do design como ação política – pautado num intelecto que almeja determinadas mudanças no status quo, se utilizando para tal de um processo de conformação que produz formas que, passando a existir em um mundo de outros agentes, tornam-se passíveis de interpretações diversas, e portanto de efeitos diversos além daqueles intencionados – é a mesma estrutura de qualquer ação política, mesmo dentro da estrita definição arendtiana. Logo, o fenômeno novo toma a forma de acaso no processo de fabricação, e de resultado de ação – aquela atividade de finalidade irrestrita segundo Aristóteles, ou sem finalidade segundo Arendt – no desígnio.

A teia de relações, condição da política, como vimos em Arendt, é onde a atividade humana tem sua imprevisibilidade, irrevogabilidade e ingovernabilidade. E, ao contrário do que se poderia assumir em uma contraposição imediata, o desígnio, apesar da sua materialidade conformada, não está preso somente aos princípios que dão vida a esta, e o que determina a sua possibilidade política não é um discurso performático, como imaginaríamos numa tentativa pueril de correspondência apressada aos termos arendtianos, mas um discurso abformático, em que a forma não é meio veiculador, mas no qual todas as decisões formais possuem uma independência interpretativa assegurada pelo fato delas existirem em um mundo de outros agentes além do primeiro projetista.

Tendo em vista que são os interpretantes que projetam livremente, o desafio do primeiro projetista, aquele que conforma, sempre foi o de condicionar a projeção do interpretantes a uma única interpretação. Mas a política do design é possível somente porque o efeito causado pelas formas no mundo não respeita as mesmas regras do processo de conformação e, portanto, nunca pode ser antecipado ou controlado. [20]

***

Devemos impreterivelmente perceber a diferença crucial entre a conformação – naturalmente pragmática e teleológica como a poiésis aristotélica e a fabricação arendtiana – e a designação se quisermos superar o antagonismo entre ideologia e produção:

gráfico

Esse é o efeito provocado no status quo, e mesmo Jones concordaria com isso, já que o desígnio não deseja uma forma específica, mas uma mudança no mundo das coisas feitas pelo homem. O que no entanto foi negligenciado nesse histórico de metodologias de design é justamente a contribuição decisiva dos interpretantes; tendo em mente uma concepção mecanicista da sociedade, que via o movimento do todo como simples somatório dos movimentos das partes. Os efeitos não estão de antemão definidos e as leis da conformação – da fabricação arendtiana – não são as mesmas do desígnio.

Jones afirmou justamente que o desígnio visava aos efeitos, mas esqueceu-se de que a existência dos intepretantes – e isso quer dizer a possibilidade de diferentes interpretações a partir da mesma forma – nega, no âmbito do design, a previsão e o controle exigidos no processo de conformação. O que nos impediu até hoje de vislumbrar essa política do desígnio foi justamente o fato de considerarmos todos os outros agentes sociais, chamados comumente de consumidores, como objetos [21], regidos então pelas mesmas leis pragmáticas, e com isso plenamente controláveis e previsíveis. O pensamento pragmático portanto não havia reconhecido até então a imprevisibilidade, ingovernabilidade e irrevogabilidade de todo projeto que passa a existir em mundo de outros agentes ao final do seu processo de conformação. O que indica a existência da possibilidade de política do desígnio é a aeficiência, ou a chance das coisas não terem resultados previstos. Esta não fruto da intenção, como em um antiprojeto, mas do acaso que só outros agentes podem proporcionar, dando início a novos inícios.

O desígnio tem, portanto, essa dupla natureza: uma sujeita às leis pragmáticas de conformação que, chamada poética da eficiência da ação, visa eliminar a margem do acaso e está a serviço da própria ação, e outra sujeita ao acaso da repercussão interpretativa de outros agentes que, não conhecendo de maneira explícita as origens da forma (seu briefing/motivação) e tampouco sendo conhecidos como os objetos o são, reagem às práticas de intelecto projetivo, sempre intencionado mas nem sempre bem-sucedido. A própria noção de que as coisas podem sair do controle e que toda previsão pode ser falha, permite que, sendo todo interpretante sujeito, o projeto possa ser interpretado como uma ação propriamente dita.

Poderíamos reconhecer essa dupla natureza, sem tanto esforço, na diferença entre o Mestre da Forma e o Mestre da Técnica existente nos primeiros anos da Bauhaus para designar aqueles professores responsáveis pela educação dos princípios do desígnio e os que zelavam pela capacitação dos alunos no conhecimento das técnicas industriais de produção. Assim como nos anos subsequentes da Bauhaus, seus ex-alunos se tornarão professores aptos aos dois magistrados, e devemos cogitar a existência do design como ciência prática e poética. Se concordarmos com Frascara que “designar é uma atividade intelectual, cultural e social: o aspecto tecnológico pertence a uma hierarquia dependente” [22], estaremos certos de encontrar uma diferença tal entre forma e desígnio que pudesse estabelecer que a Gestaltung é sempre produto de desígnio, e que este, por sua vez, sempre tem por finalidade irrestrita (já que não está definida de antemão por nenhuma ideologia que exija a eficiência de aplicação) os efeitos no status quo.

A possibilidade da fundamentação de um design como ação reside numa linha muito tênue, quase imperceptível, mas que é responsável por provocar esse estranhamento em relação ao termo desígnio. Trata-se da autonomia que toda forma alcança assim que ganha o mundo em relação à sua designação, ou seja, é a independência que o projeto ganha do briefing, que a torna interpretável e discursável. É esse descolamento do propósito que indicaria a própria imprevisibilidade, ingovernabilidade e irrevogabilidade do projeto. Este não é o briefing; é a configuração de elementos segundo uma intenção, que não é transmitida do mesmo modo que o discurso da fala e do gesto. O discurso abformático é especificamente silencioso, demanda interpretação de intenção e funda outro tipo de discurso. O curioso agora seria tentar enxergar nos gestos e nas palavras – matéria mais pura da política – um tipo de forma, tal como qualquer outra, isto é, fruto de uma intenção e passível de interpretação.

Todo nosso esforço daqui para frente deve ser no sentido de investigar essa gramatologia [23] – e aqui tem sentido a retórica de Buchanan: a concepção do design como aquela atividade marcada pela construção do discurso a partir da manipulação dos elementos da linguagem –, que não corresponde ao pragmatismo de entendimento. Por isso, talvez não caiba falar de Semiótica propriamente, já que a interpretação pode diferir radicalmente da indicação. A maneira como todo projeto define o projetista, e não o contrário, é que deve resignificar os termos: o designador designa e conforma, mas quem projeta, lança significado, atribui valor, são os interpretantes. [24]

***

Antes de terminar, porém, devemos indicar de maneira mais explícita qual seria talvez o maior problema a ser enfrentado a partir daqui: a questão do que subjaz.

Talvez o que impeça tanto uma fundamentação política do design, por meio desse instrumento chamado discurso abformático, quanto uma reformulação da liberdade positiva seja a persistência daquilo que subjaz e daquilo que é o objeto por oposição.

Ora, essa oposição é o que prende nosso pensamento sempre a uma dualidade que, como vimos, se esvazia na medida em que tentamos formular a ação a partir da fabricação designada. Assim como a política arendtiana, em contraste com a teoria tradicional política baseada nas unidades sujeitas ao poder de outras unidades, revela o agente em aparência – conceito oriundo da teia de relações, na qual é o espaço da pluralidade que permite o ser, o quem –, Arthur C. Danto também, com sua teoria que pressupõe uma insuficiência da análise formal (incluindo a estética) como modo de caracterizar a obra de arte – e aqui é a mesma busca pelo discurso e consequente sentido da produção poética – se diferencia radicalmente das teorias usuais da arte. Nos dois movimentos o que vemos é o questionamento da separação moderna entre sujeito e objeto, sujeito e sujeito, e seus principais termos. Assim como os agentes políticos a partir de Arendt não estão velados mas são em aparência – a coisa em si está sempre velada, e o que é politicamente, como ela nos ensina, é justamente o que aparece –, em Danto a obra poética depende seu sentido da relação metafórica que a forma estabelece com seu conteúdo, e assim do discurso que pode ser lido na obra.

O que satura de certa maneira o absurdo da situação é o fato de, após toda essa análise, concluirmos que nós, como designadores, temos tão pouco controle e tão pífia capacidade de antecipação dos resultados paraformais quanto os interpretantes: em verdade, se as formas realmente medeiam, os dois se encontram na mesma situação de ignorância. O designador está limitado pelas condições da conformidade e o interpretante permanece cego em relação aos propósitos originais – ele não tem acesso à coisa em si. A forma é a única que curiosamente subjaz e permanece livre.

Tão livre que podemos objetar qualquer coisa a seu respeito: a forma política dependerá do que façamos a partir dela, porque esta, por si só, não pode ser política. Então o que importa falar em eficiência? Quando as formas ganham autonomia reativa não só a máquina perde o controle e a capacidade de conhecimento sobre as coisas que produziu como seus interpretantes perdem a máquina de vista. Toda forma quando é política é aeficiente porque a eficiência deixa de ser um critério – e aqui a teoria do signo também perde a capacidade elucidadora. Todos são ignorantes dos resultados e estão na mesma condição. [25] Não existem autores, somente formas e agentes, e nesse sentido a interação política entre componentes artificiais e componentes humanos é plenamente possível.

Inconclusão ^

Devemos reconhecer a diferença entre a concepção teleológica-pragmática e a crítica da atividade projetiva. Esse conflito persiste na sua indefinição: se concordarmos que o design deve ser definido somente poeticamente, então deveremos aceitar o argumento de Argan e Arendt de que ele necessariamente será um meio para um fim. Concordaremos também simultaneamente com Simon, Jones e Peirce de que ele pode ser definido pelos seus efeitos supostamente previsionados, e como isso deve respeitar as leis de eficiência do pragmatismo servil a algum idealismo. Essa é portanto a atividade que determinamos como mecânica, isto é, que pode ser levada a cabo tendo somente como questionamento básico “Como solucionar de maneira satisfatória tal problema?”.

Mas se admitirmos que o design, ao contrário do que foi dito anteriormente, possui uma relevância política advinda da sua própria atividade e de que, portanto, pode se caracterizar como um fim em si mesmo, sem necessariamente servir a enunciados externos à sua atividade, então, devemos tomar um pouco de cuidado porque existe um preço a pagar se quisermos anunciar tal independência: a possibilidade do fracasso e do desvio da eficiência.

Vimos que Arendt não pode nos ajudar a validar esse design em si mesmo; a autora antes está mais preocupada com a distinção clara e precisa das atividades humanas a fim de resguardar as especificidades de tais esferas. Quando Arendt separa a ação da fabricação é com intuito mesmo de garantir a dignidade tanto da política quanto da poética. Ela nos fala claramente que a ação não se dá pela veiculação de meio material algum e tampouco produz resultado concreto, e isso já bastaria para exterminar nossa tese do design como ação. Arendt nos coloca o problema de maneira crítica, mas não pode nos ajudar a resolvê-lo. Tampouco Gropius, Margolin, Frascara, Andrade ou Benjamin.

Todos os projetistas que perceberam o problema não conseguiram extrapolar os limites de uma produção assimilada, seja aos contextos existentes, sejam aos contextos que eles mesmos tentaram produzir, nem redefinir o design como ação. Encontram, apesar disso, suas próprias formulações para uma produção ética, e apontamentos sobre as possibilidades e impossibilidades de ação de projeto; e o que fica descoberto é que a principal dificuldade para uma resolução do problema – no entanto quem disse que o problema deve ser resolvido? – é a própria concepção de autoria e discurso. Se quisermos compreender o design como ação, essas duas noções devem ser questionadas, tanto em vista da qualidade poética quanto da prática do design.

No entanto, a despeito dos limites impostos pelo processo de conformação, o projetista inicia algo, e nesse sentido não deve ser desclassificado da condição de agente; [26] tudo que ele põe no mundo pode provocar reações tal como uma ação no sentido arendtiano, e tendo em vista que as formas que ele produz independem de sua origem, pode-se arriscar que a diferença entre a designação e a ação talvez não seja tão grande.

Vimos que a forma, produto do desígnio, independe deste, como toda performance tem uma autonomia em relação às suas motivações. Portanto, mesmo que não possamos sacramentar a atividade projeto – que agora deve ser entendida como algo maior e mais complexo que o processo de conformação – como ação arendtiana devemos reconhecer que os problemas do discurso abformático (ou retórico, como afirma Buchanan) são os mesmos problemas do discurso aformal da práxis. Consequentemente podemos, sem muito esforço, apenas indicar – já que não há necessidade de nos estendermos muito nessa comprovação – a irrevogabilidade de todo projeto: pode-se destruir o objeto, mas se ele já foi experimentado por alguém, então há chance de ter sido interpretado, e caso não tenha sido visto por ninguém, então ele não existiu – lembremos novamente que o papel dos interpretantes é tão decisivo à mudança no status quo quanto o papel do designador.

Para que haja reação do agente a partir da forma, basta um contato com esta. À nossa investigação da possibilidade da política do design é o efeito que importa e não a eficiência e, portanto, as similitudes com a teoria da ação em Arendt são evidentes. Por isso devemos desconfiar se o único critério que nos impedirá de prosseguir, ou nos fará abandonar a ideia de uma fundamentação política do projeto, é o da durabilidade. Certamente a durabilidade das formas não é o tempo da experiência interpretativa, e isso exigirá, em breve, mais estudo.

Se o efeito é só o que resta da ação – ela é necessariamente fugaz, imotivada e inconsequente; isto quer dizer que sua justificativa não advém de suas motivações ou consequências, mas do seu próprio movimento –, não devemos desconsiderar os efeitos da forma. Estes, como aponta Danto, são mutáveis e indeterminados, passíveis de interpretações de tal maneira trans-formadoras que todo mundo ao nosso redor pode se alterar sem que as formas se alterem de fato. [27] Os interpretantes é que de fato projetam sobre a forma, e o que nos permite vislumbrar a possibilidade de uma política do design é o fato de ele dar início a esse processo de interpretações. E aquilo que foi anunciado por Christopher Jones no começo da nossa investigação deve ser repensado: afinal, se almejamos iníciar alguma mudança no mundo das coisas feitas pelo homem, será que tal alteração no status quo não é, sobretudo, também de ordem conceitual? Se a política (a partir) da forma depende das interpretações, não será verdade que podemos alterar as coisas ao nosso redor sem necessariamente alterar suas formas? Onde está a capacidade de iniciar essa mudança: na interpretação, na conformação ou em ambos?

***

O motivo pelo qual qualquer definição não resolverá o problema é que a impossibilidade de uma política do design apontada por Arendt antecipa a contradição essencial de uma atividade humana que não tenha espaço para uma não política. [28] O que cria a possibilidade de alguma coisa ser é justamente o fato de existir alguma coisa que não seja, e apesar de reconhecer que não há vácuo ou condições ideais de projeto, a política (a partir) da forma, obviamente, não pode se tornar uma camisa de força do desígnio, um sine qua non: procuramos uma possibilidade de ação de projeto, não uma definição.

Retornamos, então, à primeira linha da nossa introdução: estaríamos ignorando tanto a definição de design quanto a definição de ação ao afirmar o desígnio puramente político; o design não tem que ser definido como ação: isso implicaria dizer que assim como não existe nada fora da forma – e o conceito acaba nos levando a essa conclusão –, também não existe nada fora da política, o que aos leitores atentos de Arendt é justamente a morte da política, já que perde-se a especificidade que faz dessa atividade humana uma raridade possível e recorrente, tal como os “milagres” que acontecem a todo momento, mas de qualquer modo uma raridade típica de todo início. [29]

A situação limite desse argumento seria que todos nós agiríamos politicamente a todo momento, em todas as situações, sem que quiséssemos, o que seria uma contradição à própria ação humana. Por astúcia, essa seria a solução dada pelos modernos à política: estaríamos todos salvos dos seus males se ela fosse inevitável e inconsciente. No entanto a solução da política é justamente a sua morte, pois o que lhe dá vida e movimento são as contradições, ou, melhor dizendo: a indefinição é a matéria-prima da política, e nada poderia lhe causar mais mal do que a unanimidade e a uniformidade.

A forma, sempre fruto de desígnio, portanto, pode ser política, mas só reativamente, e é isso que a afasta do initium da ação arendtiana, mas não completamente. Afinal, essa reação não pode ser considerada uma ação (estimulada), já que não se pode dizer que a forma literalmente agiu antes? Se as formas não falam, como classificar a maneira como os agentes interagem a partir dela? O paradoxo do efeito abformático viria acompanhado da estranha transfiguração do mundo das formas em um universo de discursos.


Notas ^

Previsão e controle

  1. “What is designing?” ^
  2. “One thing that is common to all the above descriptions is that they refer, not to the outcome of designing, but to its ingredients […].” Jones, 1976, p. 4. ^
  3. “If we seek a firmer basis for our thoughts we had better look outside the process itself and try to define designing by its results. […] we can conclude that the effect of designing is to initiate change in man-made things.” Jones, 1976, p. 4. ^
  4. “Engineering, medicine, business, architecture, and painting are concerned not with the necessary but with the contingent – not with how things are but with how they might be – in short, with design. The possibility of creating a science or sciences of design is exactly as great as the possibility of creating any science of the artificial. The two possibilities stand or fall together.” Simon, 1996, p. xii. ^
  5. “Design […] is concerned with how things ought to be, with devising artifacts to attain goals. We might question whether the forms of reasoning that are appropriate to natural science are suitable also for design. One might well suppose that introduction of the verb ‘should’ may require additional rules of inference, or modification of the rules already imbedded in declarative logic.” Idem, pp. 114–115. ^
  6. A distância entre essas duas perguntas já demonstra que o problema colocado será de ordem valorativa. Não se questionará a validade do proceder pragmático, mas, sim, o significado da atividade de projeto. ^
  7. Ver significado em “Forma pro forma”. ^
  8. A origem comum no grego práxis da prática e da pragmática não pode nos impedir de perceber um diferença entre as duas palavras. Em “O problema da ação – Práxis e poiésis”, veremos com Aristóteles qual o sentido queremos enunciar na prática do projeto. ^
  9. Bauman, 1998, p. 14. ^
  10. Idem, pp. 15–16. ^
  11. Arendt, 2001, p. 303. ^
  12. Citado em Arendt, 2001, p. 49. ^
  13. “Because scarcity is a central fact of life – land, money, fuel, time, attention, and many other things are scarce – it is task of rationality to allocate scarce things.” Simon, 1996, p. 25. ^
  14. “En este mundo paleotécnico las realidades eran dinero, precios, capital, acciones: el ambiente mismo, como la mayor parte de la existencia humana, se trataba como una abstracción. El aire y la luz del sol, por su escaso valor de cambio, no tenían realidad alguna.” Mumford, 1982, p. 188. ^
  15. Essa discussão é mais profunda do que podemos ir: caso se queira estudar o problema é preciso pesquisar as dispustas entre racionalistas e empiristas até Kant. ^
  16. A crise dessa ideia e seu principal desenvolvimento se dá no século 20 com as novas teorias sobre o comportamento de sistemas complexos, quando a soma dos comportamento das partes não coincide nem define de maneira absoluta o comportamento do todo, e quando este também influencia o movimento das partes. Essa ideia tem fortes representantes entre os biólogos evolucionistas, geneticistas, físicos, químicos e sociólogos, e podemos encontrar indícios dessa nova concepção de realidade de Fritjof Capra até Richard Dawkins, sendo a noção mais representativa do espírito do nosso tempo. O fim das metanarrativas segundo Jean-François Lyotard e a complexidade descrita por Christopher Alexander, Edgar Morin e Abraham Moles são mais uma expressão dessa condição da chamada pós-modernidade^
  17. Propósito esse que, como veremos à luz do darwinismo, já não pode ser considerado nos mesmos termos: a existência natural é antes o contrário do desígnio (ver “O problema do design como ação – Terminologia”). ^
  18. “All projecting consists in an antecipation of future conduct by way of phantasying.” Schutz, 1973, p. 68. ^
  19. “[…] some years ago I introduced the term ‘satisficing’ to refer to such procedures. Now no one in his right mind will satisfice if he can equally well optimize; no one will settle for good or better if can have best. But that is not the way the problem usually poses itself in actual design situations.” Simon, 1996, p. 119. ^
  20. Pode-se entender aqui tanto a tekné quanto a poiésis aristotélica ou a fabricação arendtiana, como veremos nos capítulos seguintes. ^
  21. Ver “O problema da ação – Práxis e poièsis”. ^
  22. Aristóteles, 1984, p. 142. ^
  23. Novamente só os kantianos poderiam levar essa proposição em frente. ^
  24. “For the ‘first modernity’ […] reality was an uncontested term. It was the stable ground for the attribution of meaning to objects, images and acts. Today, this is no longer the case, and any mention of ‘reality’ must be qualified by conditions, just as the use of the term ‘meaning’ must be; hence we are unclear as to how or whether boundaries can be drawn around the real or authentic as a basis of meaning.” Margolin, 2002, p. 108. ^
  25. Basta atentarmos à propriedade da palavra alemã utilizada para nomear o design: Gestaltung – esta em perfeita concomitância com a delimitação industrial moderna de desígnio. ^
  26. Movimento análogo acontece na pintura moderna, fazendo de si mesma o tema principal, diante da crise da representação que o advento da máquina fotográfica provoca. ^

A moral do técnico

  1. Argan, 2005, p. 15. ^
  2. Idem, p. 16. ^
  3. Gropius, 2004, pp. 134–135. ^
  4. Idem, p. 137. ^
  5. Margolin, 1998, p. 47. ^
  6. “Así, las comunicaciones visuales deben ser vistas como un medio, como la creación de un punto de interacción entre las situaciones existentes, las situaciones deseadas y la gente afectada. Hablamos todavía de comunicaciones visuales, pero esencialmente, de comunicaciones, y de comunicaciones que llegan a existir con un propósito claramente articulado.” Frascara, 2004, p. 23. ^
  7. Argan, 1998, p. 266. ^
  8. Jardim, 2005, p. 25. ^
  9. Idem, p. 26. ^
  10. Argan, 2005, p. 17. ^
  11. Jardim, 2005, pp. 52–53. ^
  12. Argan, 2005, p. 156. ^
  13. Idem, 1992, p. 412. ^
  14. “Cuando los racionalistas del Bauhaus arribaron a la simplicidad de las formas motivados por su interés de eliminar la ornamentación tradicional de todo objeto de diseño, sus trabajos tuvieron una gran fuerza. Cuando la simplicidad se busca a toda costa porque parece moderna, cuando se transforma en un estilo, los productos pierden poder.” Frascara, 2004, p. 43. ^
  15. Uma consequência curiosa é que é próprio da relação entre o homem e a forma que aquele só possa julgá-la em sua presença imediata, e por isso não poderia haver discurso pela forma distante da forma: só na experiência direta é possível concebê-la e por isso o discurso através dela teria o mesmo alcance limitado pela voz e pela visualização do gesto político. ^
  16. Negar essa possibilidade é botar em xeque o papel da crítica formal. A capacidade de interpretar é o que torna a política (a partir) da forma viável. ^
  17. Negar essa outra possibilidade seria botar em xeque, dessa vez, o conceito de “cultura material” presente na Arqueologia, e que “lê” nos objetos costumes, práticas e crenças – talvez isso não seja a mesma coisa que uma ação intencionada, como mais a diante veremos. A comunicação pela forma nada mais é que esculpir e escavar a forma^
  18. “Todos los objetos con que nos rodeamos forman un lenguaje más allá del lenguaje, son una extensión de nosotros mismos, una visualización de lo invisible, un autorretrato, una manera de presentarnos a los demás y una dimensión esencial de la humanidad. Ningún animal pone tanta energia en el acto de rodearse de objetos con el propósito de comunicar.” Idem, p. 67–69. ^
  19. Nesse sentido de per-forma, já poderíamos nos perguntar se a performance do texto de que nos fala Roland Barthes em A morte do autor é a mesma que caracteriza a ação das artes performáticas indicadas por Arendt. ^

O problema da ação

  1. Aristóteles, 1984, p. 143. ^
  2. Ribeiro, 1981, p. 17. ^
  3. Cabe indicar que dentro das dimensões desse trabalho não poderemos empreender tal tarefa de reconstituição ou crítica da teoria política. Antes indicaremos seus principais componentes, na medida do necessário, até nos depararmos com a novidade do pensamento arendtiano. ^
  4. Ribeiro, pp. 23-24. ^
  5. Aristóteles, s.d., p. 12. ^
  6. Idem, p. 14. ^
  7. Isso inclui as teorias contratualistas e suas derivadas, como as liberais, trabalhistas e consevadoras. ^
  8. A tradução de Roberto Raposo do original “work” é “trabalho”. Aqui preferimos nos distanciar da conotação do trabalho marxista utilizando fabricação. Mas, praticamente, não devemos ver nenhuma diferença. ^
  9. Arendt, 2001, pp. 15–16. ^
  10. Arendt, 2005, p. 192. ^
  11. Ver conceito em nota número 12 em “O problema do design como ação – O anteprojeto”. ^
  12. Idem, p. 203. ^
  13. Ibidem, p. 191. ^
  14. Arendt irá recordar o conceito do daimon grego – entidade pessoal que permanecia durante toda a vida do indíviduo atrás de seu ombro, visível aos outros mas invísivel para este – para explicar como a identidade é construída não só pelos outros ou pelo indivíduo, mas da relação política que as partes mantêm. ^
  15. Barthes, 2004, p. 64. ^
  16. Idem, p. 61. ^
  17. Nessa crítica deve-se incluir todos aqueles crentes de uma solução fenomenologicamente estética do problema da ação na coletividade. Basta atentar que a tentativa de consenso buscada na experiência da fruição do “belo” ou do “sublime”, como afirma Luc Ferry, é infrutífera e passa longe do problema político. Devemos sempre ter em mente que, em uma análise política tal como a proposta por Arendt, não devemos buscar mais consentimento do que possibilidade de ação. ^
  18. As implicações disso para a noção de Criador seriam muitas: Ele não poderia ser considerado eterno, tão somente existente até a conclusão da sua Obra. Sua existência nos pareceria eterna pelo fato de nós sermos a Obra, que jamais O conheceu, somente O deduziu performaticamente. ^

O problema do design como ação

  1. Arendt, 2001, p. 15. ^
  2. Idem, p. 11. ^
  3. “[…] the poetics of products – the study of products as they are – is different from the rhetoric of products – the study of how products come to be as vehicles of argument and persuasion about the desirable qualities of private and public life.” Buchanan, 2004, p. 26. ^
  4. Apesar de o filósofo grego nos especificar essa capacidade transformadora da poética, ele não nos ajuda na questão do design como ação arendtiana, visto que sua Poética versa sobre as disciplinas teatrais, aquelas mesmas que para Arendt eram por excelência políticas: performances espontaneamente efêmeras. ^
  5. Buchanan também se debruça na relação entre as palavras e as obras nesse texto, no entanto de maneira novamente histórica. ^
  6. “[…] the consequence of separating the theorical from practical, the ideal from the real, and the cognitive from the noncognitive was a loss of the essentially humanistic dimension of production.” Buchanan, 2004, p. 34. ^
  7. Japiassú, 1990, p. 123 verbete “humanismo”. ^
  8. Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo, em 27 de abril de 1934. ^
  9. Benjamin, 1994, p. 121. ^
  10. Hodges, 2001, p. 45. ^
  11. Só a revolta parece capaz de responsabilizar o técnico, e devemos ficar preocupados se algum dia as formas que produzirmos forem capazes do mesmo não. ^
  12. Aqui o conflito é justamente entre a concepção negativa e positiva de liberdade. O problema da liberdade na política não pode ser definido apenas pela “liberdade de fazer tudo que não é proibido”. Não existe, de antemão, nenhuma razão para se fazer nada; a decisão de empreendimento é política e possibilita o começo de algo novo, tal como Arendt encontrou na palavra grega árkhein (começar, conduzir) um dos fundamentos da ação. ^
  13. Benjamin, 1994, pp. 127–128. ^
  14. Idem, p. 129. ^
  15. Ibidem, p. 134. ^
  16. Arendt, 2001, p. 11. ^
  17. Tal contraposição é que necessita de intenso estudo. Ao que parece, o distância entre o desígnio e o acaso é muita pequena, dado que ambos versam, como diria Aristóteles, sobre tudo aquilo que poderia não ser, que não pertence a esfera da necessidade. Acaso e desígnio se assemelham ou se diferenciam dependendo apenas da óptica que se adote: afinal toda ação humana, se observada do ponto de vista do ato consumado, não é simples fruto do acaso? O conceito de História surgido no século 18 carrega essa indefinição, e na nossa investigação sobre a natureza do design, cabe definir, em um futuro próximo, o sentido desses conceitos. Todo desígnio é acaso fora do ponto de vista humano? ^
  18. Aristóteles, 1984, p. 144. ^
  19. Este – que não é necessariamente humano – é o que define o que é uma projeção. Não é à toa que o termo projeto sempre foi lido com antecipação. ^
  20. Um próximo estudo também deve contemplar o papel da pesquisa e dos movimentos sociais. A visão dos agentes como objetos já foi denunciada neste trabalho, mas o fenômeno da massa oferece um desafio maior a nossa compreensão. ^
  21. O termo revela a dificuldade de imaginar tal situação já que ob jectum contém o prefixo que indicaria o lançamento ou a projeção sobre algo que subjaz. A concepção de sujeito é inseparável da concepção de objeto, que talvez tenhamos daqui pra frente que reavaliar se toda fundamentação política pode ser feita sobre essa dualidade; talvez o sujeito modernamente concebido já não faça sentido, e junto com ele o objeto também desapareça. ^
  22. “Diseñar es una actividad intelectual, cultural y social: el aspecto tecnológico pertenece a una jerarquía dependiente.” Frascara, 2004, p. 27. ^
  23. Derrida, 2004. ^
  24. Buchanan percebe a mesma saída, apesar da insuficiência em resolver o problema do valor do designar – a atitude continua sendo performática: “Design is the art of shaping arguments about the artificial or human-made world, arguments which may be carried forward in the concrete activities of production in each of these areas, with objective results ultimately judged by individuals, groups, and society” [Buchanan, 2004, p. 46]. ^
  25. Da mesma maneira, Buchanan aponta em seu texto para a ausência de um assunto próprio (subject matter) do design, e reitera que não devemos entender o projeto pelo que subjaz a ele, já que isso não está de qualquer forma definido, também o projeto pode se debruçar sobre qualquer assunto (subject), e a noção de sujeito do projeto pode não mais ter sentido. ^
  26. Buchanan novamente se debruça sobre o mesmo problema: “[…] design is an instrument of power. It is the art of inventing and shaping two-, three-, and four-dimensional forms that are intended to satisfy needs, wants, and desires, thereby effecting changes in the attitudes, beliefs, and actions of others” [Buchanan, 2004, p. 48]. ^
  27. A filosofia da arte de Danto pressupõe justamente que a diferença entre os objetos ordinários e os objetos de arte é peremptoriamente conceitual, não apenas estética. Os objetos não mudam, o que muda é a maneira de entendê-los. ^
  28. É preciso reconhecer logo que o labor é, por natureza, uma atividade animal, e não argumenta em contraste à política dentro da atividade humana que mencionamos. ^
  29. Nem todo projeto acaba sendo político; devem existir condições para que isso aconteça, que só poderão ser exploradas em outro trabalho. ^


Bibliografia ^